Vácuo
Você negaria até a morte mas a verdade nua e crua (e meio besta) é que você sempre me enganou. Mesmo e sobretudo com esse seu discurso mole. O inescapável núcleo encantador da serpente que habita em mim se repetindo à exaustão. Sim, eu sei que você vai dizer que é mentira e que eu sempre te acuso ou me negaceio -naquela velha estratégia nada estratégica de ataque e defesa simultâneos. Mas sim, mais uma vez reitero o Sim que está aqui engasgado. Você me enganou com esse seu blablablá infinito com que se engana a si mesmo. Ao nunca assumir não saber o que queria e ficar nessa lenga-lenga eterna de ires e vires, com seus autores, conceitos, versículos e notas de rodapé. Sorrio neste instante, eu que sempre me apoiei na base tão sólida das palavras dos outros. Palavras tão densas, tão assertivas, sensatas.
Você tinha histórias tão convincentes, tão cheias de sentido em seus testemunhos de crise e dúvida… Como é difícil para você viver a vida. Eu sempre acabava por me implicar nessa tua história e saía dela com as mãos cheias de impotência e mais coragem para te suportar por mais um segundo -um ano, uma década- sem ar.
Eu engolia vorazmente tudo o que podia para te fazer uma respiração boca-a-boca. Te dava tudo. Me exauria. Roubaria por você, mataria por você, traficaria por você. Me deixaria aprisionar. Me deixei. Me deixei prender e cá estou, te escrevendo por trás das grades, tendo que pagar três carregamentos para isto eventualmente ser entregue. A minha violência era tudo o que eu tinha, era o que te excitava e nos fazia sublimar. Você no transbordamento à flor da pele de todo o gozo que seria possível colocar em cena. Meter na veia. Rasgar na carne, que quase já não existia. Ela ia se desfalecendo grão em pó. Como você fez isso comigo, sempre eremita e em guarda? Controle era o meu segundo nome. Ah como tentei te manejar, seguindo cada passo do teu raciocínio e dos teus gestos.
Nunca deixei de me fantasiar para cumprir teu mais leve desejo. Leve ou fundo, tanto faz: para mim dava no mesmo. Mas como você fez isso comigo é a minha pergunta agora. Por isso escrevo e exijo (imploro?) uma resposta. Como você fez isso comigo, esse comigo sempre em cena de domínio? Demorei todos esses anos para perceber. Falando rebobinando regurgitando em cima de uma poltrona capenga sob um ouvido atento. Que não é o meu, porque esse não escuta mais nada, e talvez nunca tenha podido entender o quase nada que você tentava esconder, tanta era a cera gosmenta que tinham jogado dentro dele. Você inclusive. Aliás, você sobretudo. Colocando todo o lixo da nossa realidade no meu ouvido infantil. Como você me aprisionou dessa forma ou nessa fôrma ou dentro desse éden, pergunto eu pela terceira vez.
Foi assim. (Vou narrar então para me desenhar). Eu passei na rua. Passantes passam à exaustão, desde o alvorecer do século 19 -esse número que será sempre primo e solitário. Eu passei na rua abarrotada. Era diáfana a luz e morna a pressão. Eu olhei e você olhou. Aquele olhar que mira e entorta fazendo seus ganchos perfurarem o pescoço. Eu torci as veias todas e com elas meu corpo. Foi instintivo, não era eu. Algo em mim. Esse algo se contorceu e caiu no chão. E até hoje não pode evitar o dilema com o pensamento que naquele instante ele não pôde pensar: se eu não tivesse me deixado levar. Se eu tivesse podido evitar.
Naquele momento, ou talvez três dias depois, ou três meses, anos, já nem sei e também não importa, você disse: eu te amo e esse amor é único e para sempre e você e eu estaremos assim atados até a morte até depois da nossa morte e até depois do fim do mundo e do fim de tudo, pois essa união transcende todas as funções e todas as mortes. A eternidade.
Você e eu estamos assim prometidos e vamos forjar a gênese do todo e nessa fé perpetuar a espécie e o amor em que a nova humanidade saberá se deixar penetrar. Não, não era nada assim patético nem com essas palavras nem com essa pretensão mas era exatamente isso que era vivido no silêncio bruto daquele sexo calmo.
Esse gozo messiânico invadia cada brecha da parede perfurada à bala. Eles lá fora queriam descobrir nosso esconderijo a qualquer custo. Eles não suportavam esse amor nem aquela carne em combustão. Era o mito da inveja se fazendo encarnação real mais uma vez. Muita inveja. Tanta mas tanta que dava desejo de destruir. Ou era tanto desejo de destruição que tinha que se encontrar uma célula para fissurar.
Expansão. A ignorância mãe suprema de todas as coisas. Tudo que eu quereria era poder me dissolver dentro da gosma quente e maravilhante da nossa criação mais sublime. Acordava todos os dias de todos aqueles anos e não desejava mais nada além de me cegar, me destituir e me elevar -sim- em nome desse nós. Eu te amava e tanto que meu corpo já nem importava e minha alma era de um mestre sem nome. Até hoje pressinto teu fantasma pelas ruas.
Expansão.
Contrario tudo ao ouvir os espíritos que não param de triturar essas palavras no moedor da minha carne. Viraram letras. Soltas. E assim eu perdi a razão. Assim estou aqui descendo em câmera lenta, sugada pelo vácuo máximo.
Os ouvidos doem e não sei mais compensar. Os ouvidos entupidos de antes doem e não sei mais por que carrego teu corpo morto dentro de mim.
Foi assim que enlouqueci.
Fiquei fora do meu corpo assistindo você fazer o que quisesse com ele. Você me vendeu, me cortou, me açoitou e colocou de quatro para todo mundo ver.
E eu cúmplice nessa via sacra. A verdade eu te digo agora, com todas estas letras.
E para isso te escrevo. Agora que pude finalmente chegar nesse resto de sangue quente. Eu me corto e te confesso: eu te conduzi da forma mais secreta e infame. Líder.
Em todos os momentos em que você pensava que estávamos juntos eu deixei você cair e desenhar o maior dos seus delírios. Te larguei, ou te comi. Fagocitei. E acordei no éter.
Não sei por que não podíamos existir os dois ao mesmo tempo. Até hoje não compreendo isso e até hoje ninguém sabe como se exercer ao lado de alguém. Respirar. Ser. Simplesmente poder existir -em paz.
É tudo que se quer e de repente eu tive que te matar (ou talvez tenha sido o contrário). Sei que você está aqui comigo ou dentro de mim ou a meus pés.
Eu jamais havia conseguido formar a imagem do que diz esse verso:
jaz aqui a meus pés.
Agora vejo. Vejo em cada esquina corpos que jazem aos pés de outros corpos, que passam. Às vezes tropeçam.
Passantes.
Assim fez-se a gênese: eu que te amei e você que me amou, nós que éramos livres e andávamos eretos na multidão. Nossos olhares se retorceram e se costuraram. Nós nos dominamos e fomos abatidos. Você jaz aqui a meus pés. Eu domino tua carne e a faço trabalhar para mim. Como você me faz gozar. Como e tanto.
Até o dia em que não suportei mais o mínimo que você me dava -sempre no limite- e o muito que eu arrancava de ti. Não podia suportar a consciência de te explorar dessa maneira.
Parece que agora isto vira uma oração e também eu me curvo. Também eu me calo diante de uma presença sem som e sem sentido, que somente me faz berrar. Para poder viver um pouco mais.
Você me seduziu e me abandonou.
Como todos os deuses fazem.
Como todos os mortais imitam.
Esse teu crime.
E agora, neste exato instante, você acaba de cortar com lâmina desafinada o fino fio de oxigênio que restava. Mais tênue que uma teia de aranha. Você desfiou o fio e me soltou no vácuo.
Escuta o meu berro ancestral -ou esse som não se propaga no vácuo? Surdos, acho que estamos surdos de tanto gritar, de tanto matar. Como te amei mais do que meu ser era capaz de processar, tive que entregar meu crachá e metralhadora a todas aquelas pessoas que veneravam o que não me era dado vencer. Por isso a pena de morte.
A cada vez que me apaixono -ó muitas desde o início dos tempos ó muitas- mergulho nesse abismo voraz e contraditório. Para em seguida você me deixar no nada. E depois prometer tudo. Os mundos, os fundos, os inícios. Aí enlouqueço. Paro. Penso. Mentira, o pensamento não se institui.
Atravessa o portal.
Quando olho para a quina, estou do outro lado, e só.
Só posso nos rasgar e assim eliminar teu corpo em pedaços que se multiplicam dentro do meu. Antropofagia inútil e velha. A tinta que escreve para aquele que não pode mais sentir.
oferenda inútil
final de uma linha
sem ponto
sem cúmplice
adiamento impossível
atrasada sempre
oferenda