Notas sobre o impossível: dizer e amor em Clarice Lispector
O amor inexplicável faz o
coração bater mais depressa.
Água Viva
Como dizer do amor, esse inexplicável? Pior: do amor em Clarice Lispector? Podemos buscar delimitar seus contornos, sabendo no entanto que se está ousando muito: buscar cercear o impossível do amor, do sentimento e da alma através das sempre desajeitadas palavras. Esses frágeis objetos que buscam transmitir algo do que se experimenta apesar dos mal-entendidos. Diálogo de surdos que se vivencia ao tentar atingir ou ser tocado pelo outro.
No entanto, há lampejos. Desmaios. Há uma névoa de possibilidade. Diz Clarice de Macabéa, em A hora da estrela: “Pergunto eu: conheceria ela algum dia do amor o seu adeus? Conheceria algum dia do amor os seus desmaios? Teria a seu modo o doce vôo? De nada sei. Que se há de fazer com a verdade de que todo mundo é um pouco triste e um pouco só” (HE, 50[1]).
Há o amor, porém tortuoso e heterogêneo. Torto em si próprio, heterogêneo em relação ao outro e às palavras. Talvez sempre fadado ao fracasso – e numa tríplice aliança de impossibilidades: a de atingir o objeto de amor e se regozijar com ele (no sentido de atingir uma felicidade, mesmo que clandestina); a do diálogo, de comunicar algo verdadeiro de si ao ser amado, alteridade radical e inatingível; a de expressar a sensação, o sentimento, dizer desse encontro ou do projeto de encontro.
o impossível encontro: o objeto de amor aquém ou além do ser
Enfoquemos esse primeiro eixo – o amor ‘em si’ como impossível, trama que se desdobra em dois novos eixos: impossibilidade de se alcançar o outro e assim atingir a satisfação e impossibilidade que, nos breves instantes de encontro, ele se mantenha. Ou seja, não se pode alcançar o objeto de amor e não é possível preservá-lo – mesmo quando da ilusão que se alcançou algo -, pois ele sempre está mais além.
O querer é uma presa do circuito infinito do desejo que busca alcançar seu objeto para sempre fugidio. Quando, porventura, desavisadamente, esse objeto se deixa enlaçar, é somente para perder-se no instante seguinte, nada mais que efêmera fantasia. Diz Clarice em fragmento inédito coletado por Olga Borelli: “… duas pessoas nunca são permanentemente iguais e isso pode criar, no mesmo par, novos amores. Fui amada por alguns e conheço a paixão. Os desejos e as paixões morrem quando são satisfeitos. A vontade é imortal[2]“.
Em “Devaneio e embriaguez de uma rapariga”, a personagem caminha tortuosamente pelas veredas da fantasia, perdida no non sens de suas sensações. Ela não sabe bem o que lhe ocorre, numa típica definição indefinida do amor: “Ai, é uma tal coisa que se me dá que nem bem sei dizer” (LF, 26). A rapariga prossegue devaneando até poder dar um nome a essa sensação: “Ai que cousa que se me dá! pensou desesperada. Teria comido demais? ai que cousa que se me dá, minha santa mãe! Era a tristeza” (LF, 27). Vai seguindo sua associação de pensamentos até deixá-los ancorar na figura do amigo do marido. Explode então o fluxo de sensações que lhe invadiam a partir da rememoração da antes inconsciente cena do flerte com ele, para finalmente vir dar no jorro de amor:
“Quando o amigo do marido a viu tão bonita e gorda ficou logo com respeito por ela. E quando ela ficava a se envergonhar não sabia onde havia de fitar os olhos. Ai que tristeza. Que é que se há de fazer. (…) Então a grosseria explodiu-lhe em súbito amor; cadela, disse a rir (LF, 27-28)”.
E assim termina a história. Ou seja, temos aí a conjunção de dois eixos: o amor é o que aparece primeiramente como desconhecido, surpresa que arrebata, e seu objeto existe efemeramente no espaço propiciado pela fantasia. Bastou-lhe uma cena – o roçar do pé na mesa do restaurante – para que ela se entregasse à volúpia erótica daquele instante.
No conto “O búfalo”, tem-se o embate visceral, todo pela via pulsional do olhar, entre a mulher e o animal. Tal tensão retoma metaforicamente o conflito amor/ódio da relação homem-mulher, da qual não sabemos nada a não ser sua inescapável não reciprocidade:
“Não sabia onde estivera. Estava de pé, muito débil, emergida daquela coisa branca e remota onde estivera.
E de onde olhou de novo o búfalo. (…)
Ah!, disse sacudindo as barras. Aquela coisa branca se espalhava dentro dela, viscosa como uma saliva. O búfalo de costas. (…)
O búfalo voltou-se, imobilizou-se, e, a distância, encarou-a.
Eu te amo, dise ela então com ódio para o homem cujo grande crime impunível era o de não querê-la. Eu te odeio, disse implorando amor ao búfalo (LF, 166-167)”.
Ou seja, tanto em um caso como no outro, o ser amado não acompanha o amante. Seja por estar presente somente nos devaneios de uma rapariga embriagada (haveria algo mais inefável?), seja por estar deslocado na figura de um animal sem fala, o outro do amor não está presente: desencontro inexpugnável, que se repete sem cessar ao longo da obra.
o impossível diálogo: a alteridade incomunicável
Como quando se diz: fulano está preso e permanece incomunicável. É quase essa a sensação que temos ao ler os textos de Clarice quando os amantes ou namorados se encontram face a face. Como se estivessem absolutamente imersos no mal-entendido ou na distância infinita. O antológico (não) diálogo de Macabéa e Olímpico em A hora da estrela nos dá uma gota dessa estrutura:
“Ele: – Pois é.
Ela: – Pois é o quê?
Ele: – Eu só disse pois é!
Ela: – Mas “pois é” o quê?
Ele: – Melhor mudar de conversa porque você não me entende.
Ela: – Entender o quê?
Ele: – Santa Virgem, Macabéa, vamos mudar de assunto e já!
Ela: – Falar então de quê?
Ele: – Por exemplo, de você.
Ela: – Eu?!
Ele: – Por que esse espanto? Você não é gente? Gente fala de gente. (…)
Ela: – Ah, não sei explicar.
Ele: – E então?
Ela: – Então o quê?
Ele: – Olhe, eu vou embora porque você é impossível!
Ela: – É que só sei ser impossível, não sei mais nada. Que é que eu faço para conseguir ser possível? (HE, 58-59)”.
Em um outro trecho é o próprio narrador quem explicita a opacidade desse diálogo manco, onde também o amor permanece indefinível:
“O seu diálogo era sempre oco. Dava-se conta longinquamente de que nunca dissera uma palavra verdadeira. E “amor” ela não chamava de amor, chamava de não-sei-o-quê.
– Olhe, Macabéa…
– Olhe o quê?
– Não, meu Deus, não é “olhe” de ver, é “olhe” como quando se quer que uma pessoa escute! Está me escutando?
– Tudinho, tudinho!
– Tudinho o quê, meu Deus, pois se eu ainda não falei! (HE, 66)”.
De maneira diferente, porém análoga, é esse mesmo desencontro visceral que encontramos em A maçã no escuro. Ser amado e amante encontram-se em pólos radicalmente distintos, separados pela distância, pelo silêncio ou pelo equívoco. Ermelinda vivencia sua paixão contida por Martin, no lento gotejar dos dias e de seus cálculos, na mais absoluta ausência de troca, como se o amor estivesse sempre fadado a ser unilateral:
“Tremia de medo de deixar de amá-lo. Nunca se aproximara dele, e entre ambos sempre havia a distância. Mas aos poucos a moça espiritualizara a distância e terminara por torná-la um meio perfeito de comunicação. A um ponto que, agora, só a distância constituía espaço suficiente para ela desdobrar seu amor e atingir um homem: perto dele sentia-se incomodada por ele próprio, e não sabia como lhe dar todo o amor (ME, 98)”.
Além da incomunicabilidade entre as personagens, um outro tópico revela a precariedade desse amor: a paixão havia sido inventada. Ou seja, o sentimento vem dar conta de uma necessidade interna do ser, vem preencher uma falta. O amor de Ermelinda havia sido, assim, ‘calculadamente’ engendrado. Na perdição da fazenda, ele simbolizava uma história, um destino. Revela-se, dessa maneira, o vazio estrutural de um sujeito que precisa criar o amor a fim de traçar um caminho, de se sentir artificialmente preenchido:
“O que queria de Martim, nunca saberia dizer: queria obscuramente que através dele sua vida tomasse o tamanho de um destino. Estava confusa, sabia apenas que tinha que se precipitar pois o tempo se tornara curto.
E falsa, calculada, procurava se pôr de algum modo em transe de amor. Até que finalmente, de tanto olhar o homem e de tanto se empurrar e exigir de si, de novo começou a sentir aquele mal-estar. Então, radiante, enfraquecida pelo esforço, ela o amava. (…)
Lá estava ele. Envolvido pelo poder que ele tinha sobre ela e que ela mesma lhe conferira.
Até que finalmente Ermelinda chegou ao ponto em que já não se perguntava mais se o amava (ME, 97)”.
Ela inventara o amor e estava prenhe dele. Desenhara um sentido na seta que havia de seguir. No artificial dessa criação e no impossível da comunicação revela-se um amor frágil, quase mera construção de um sujeito face à sua condição solitária e sem roteiro.
o impossível dizer: o sentimento que não se coloca em palavras
A problemática do que não se pode dizer com palavras continuamente perpassa a obra clariceana. E parece que nada, a rigor, se pode expressar inteiramente. É da própria estrutura do significante, da palavra, não poder captar a totalidade da coisa, do mundo. Por que o amor ficaria fora disso? Também ele cai sob o jugo do impossível a ser dito plenamente, o que acrescenta mais um impossível à nossa lista.
Do primeiro ao último romance, essa questão se presentifica. Já a Joana, de Perto do coração selvagem, sabe bem do abismo que separa as coisas e as palavras. Como, a partir daí, dar conta dos momentos de grande profundidade que pinça em sua infância? E da teoria sobre a memória que sustenta nossos sentimentos e crenças? Enrodilhada que está no triângulo amoroso formado por ela, seu marido e a terceira, a personagem trata de falar, mesmo sabendo que talvez tenha que se calar se quiser efetivamente dizer algo:
” – Sim, eu sei, continuava Joana. A distância que separa os sentimentos das palavras. Já pensei nisso. E o mais curioso é que no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. Ou pelo menos o que me faz agir não é, seguramente, o que eu sinto mas o que eu digo (PCS, 109)”.
Assim, não somente Clarice problematiza os limites da língua, como sublinha sua função ‘criadora’: a palavra não é apenas representante de uma realidade outra, externa e referencial ou uma realidade interna subjetiva, mas é a condição mesma que faz criar e operar o sentimento. Até que ponto o ato de dizer o sentimento não fez Joana enfim entregar-se ao amor, deixar-se envolver por Otávio? Entrega efêmera, mas entrega: “Quando Otávio a beijara, segurara-lhe as mãos, apertando-as contra seu seio, Joana mordera os lábios a princípio cheia de raiva porque ainda não sabia com que pensamento vestir aquela sensação violenta, como um grito, que lhe subia do peito até entontecer a cabeça. (…) Depois cessou a felicidade. A plenitude tornou-se dolorosa e pesada e Joana era uma nuvem prestes a chover (PCS, 111, 112)”. Circuito complexo: a ação se perfaz a partir da fala que instaura o sentimento: ato de palavra.
Jamais Clarice iria abandonar esse tema, levando-o aos limites de seu questionamento. Isso ocorre, por exemplo, 30 anos depois, em Água Viva, um de seus últimos romances, no qual a personagem narradora busca apreender o instante-já e a expressão mais ‘pura’, onde a própria noção de eu que pensa parece desestruturada:
“Enquanto o pensamento dito ‘liberdade’ é livre como ato de pensamento. É livre a um ponto que ao próprio pensador esse pensamento parece sem autor. (…)
“Tudo” é quantidade, e quantidade tem limite no seu próprio começo. A verdadeira incomensurabilidade é o nada, que não tem barreiras e é onde uma pessoa pode espraiar seu pensar-sentir. (…)
Estou falando é que o pensamento do homem e o modo como esse pensar-sentir pode chegar a um grau extremo de incomunicabilidade – que, sem sofisma ou paradoxo, é ao mesmo tempo, para esse homem, o ponto de comunicabilidade maior. Ele se comunica com ele mesmo (AV, 108-109)”.
Chega-se, portanto, a uma teoria do ‘pensar-sentir’, unidade que, forjada linguisticamente, busca expressar a de fato impossível junção significante-sentimento ou, no nosso caso, amor-palavra. E a Clarice de apontar o paradoxo: o máximo de incomunicabilidade é a única possibilidade de comunicar. No entanto, “ele se comunica com ele mesmo”. A partir daí, resta-nos a questão: e o outro?
o outro inatingível: amor possível?
ou
frágil laço do eu com o mundo: contorno do amor possível?
Em diversos textos, Clarice reafirma a impossibilidade última de uma autêntica relação com a alteridade, pura e simplesmente o eu não estabelece um elo real e verdadeiro com o outro, sempre fadado que está à solidão: “Ninguém pode entrar no coração de ninguém (HE, 78)”. Mais adiante na obra, o narrador reafirma sua posição, dizendo de sua Macabéa:
“Quisera eu tanto que ela abrisse a boca e dissesse:
– Eu sou sozinha no mundo e não acredito em ninguém, todos mentem, às vezes até na hora do amor, eu não acho que um ser fale com o outro, a verdade só me vem quando estou sozinha (HE, 83)”.
O outro é, assim, enganador, não confiável e sobretudo inatingível; a verdade sobre o mundo e o ser surge somente a partir da auto-reflexão solitária do sujeito. Qual função então teria esse outro e que espaço lhe é concedido? A resposta que somos obrigados a encarar é simples: o espaço do outro é muito estreito, fio tênue que se rompe continuamente. Não há uma diferenciação muito elaborada entre o eu e o outro: a alteridade é uma espécie de espelho, tábula rasa onde o eu se projeta e busca se constituir e/ou se reconhecer.
Assim, haveria uma verdadeira relação de troca entre o eu e o outro? Uma relação propriamente amorosa ou afetiva, onde o sentimento servisse como veículo de encadeamento entre esses dois eixos? A resposta parece ser, feliz ou infelizmente, não. O outro se oferece, ou melhor, é utilizado como pólo de projeção da busca do eu pela descoberta de si quanto descoberta do mundo. O outro se coloca como o espelho que irá fornecer a imagem cujos contornos possibilitarão o auto-conhecimento, tal como a Lóri de Uma aprendizagem. É disso que se trata: aprender e apreender, a si e ao mundo. O material do qual é feita essa aprendizagem passa pelo corpo, pelo prazer e pelo amor – todos eles quase acessórios para o longo percurso de aprendiz que Lóri percorrerá. Pois no início ela era seca, não havia o amor:
“A noite que não vinha, não vinha, não vinha, que era impossível. E o seu amor que agora era impossível – que era seco como a febre de quem não transpira, era amor sem ópio nem morfina. (…)
Ah, e a falta de sede. Calor com sede seria suportável. Mas ah, a falta de sede. Não havia senão faltas e ausências (UA, 22)”.
No processo de aprendizagem é Ulisses o professor, o mestre. E não esqueçamos que também ela ensina, desta vez crianças. Ulisses realiza um único trabalho: ensina aos alunos de filosofia o amor ao saber, ensina a uma mulher o amor ao saber, igualmente. Saber de si e do mundo. É à própria personagem que cabe explicitar seu ponto de chegada: “Lóri tinha a intuição de que, passadas as primeiras perturbações da festa íntima que haveria, ela teria enfim a experiência do mundo. Bem sabia, experimentaria enfim em pleno a dor do mundo. E a sua própria dor de criatura mortal, a dor que aprendera a não sentir (UA, 140)”. Quase como G.H., atravessa sua via crucis e chega no mais íntimo da vida, do corpo e da morte. Beirando o vivo e o deus. O estado de graça daquela que sabe e alcançou a luz, caminhando do ‘sabe’ ao ‘sabe-se’, saber o outro e saber a si:
“O estado de graça em que estava não era usado para nada. Era como se viesse apenas para que se soubesse que realmente existia. Nesse estado, além da tranquila felicidade que se irradiava de pessoas lembradas e de coisas, havia uma lucidez que Lóri só chamava de leve porque na graça tudo era tão, tão leve. Era uma lucidez de quem não adivinha mais: sem esforço, sabe. Apenas isto: sabe. Que não lhe perguntassem o que, pois só poderia responder do mesmo modo infantil: sem esforço, sabe-se (UA, 147)”.
Findo o percurso, nasce Lóri mulher, nova Eva: “Sem tristeza nem arrependimento, eu sinto como se tivesse enfim mordido a polpa do fruto que eu pensava ser proibido. Você me transformou na mulher que sou”. Mulher que vivencia seu ser e assim encontra a resposta à questão que lhe perseguia: o amor surge assim como solução para o enigma da existência: “A solução para esse absurdo que se chama ‘eu existo’, a solução é amar um outro ser que, este, nós compreendemos que exista (UA, 169)”.
Eis o desabrochar da moça que se faz mulher, em sua aura sexual, tal como retratado em vários de seus contos. O processo é o de maturação, para que nasça um ser maduro e sexualizado. Assim como o menino de “O primeiro beijo”, que havia se “tornado homem” pela impactante e sensual experiência de ter matado a sede bebendo diretamente da boca da estátua que servia de fonte. A partir desse momento, algo de fundamental se transforma: “Olhou a estátua nua. Ele a havia beijado” – “a vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com sobressalto (FC, 166)”.
A criança que desabrocha mulher é um tema clariceano por excelência, processo de formação que inclui a experiência de algum tipo de êxtase amoroso. Porém, ainda nessa vertente, o outro continua a ser personagem secundário, objeto marginal que possibilita a maturação do sujeito. Inúmeras são as personagens que retratam tal saga: a menina de “Preciosidade” (LF), que vive o encontro com o masculino assustador e o ‘precioso’ de se descobrir outra; a menina de “Mistério de São Cristóvão” (LF), que oscila entre ser moça e voltar a ser menina, nos mistérios da puberdade; a clássica Ofélia de “Legião estrangeira” que, depois de andar às voltas com seu pintinho, cresceu e foi ser princesa hindu; a menina de “Uma história de tanto amor” que, incorporando o universo animal, entra no jogo do masculino e feminino.
Vejamos mais de perto essa história. A apropriação da diferença dos sexos é atravessada pelas comparações entre o galo e suas galinhas – Pedrina, Petronilha e Eponina. Até o dia em que, incorporando o animal totêmico, marca-se para sempre seu destino de mulher: “Comeu sem fome, mas com um prazer quase físico porque sabia agora que assim Eponina se incorporaria nela e se tornaria mais sua do que em vida. (…) De modo que a menina, num ritual pagão que lhe foi transmitido de corpo a corpo através dos séculos, comeu-lhe a carne e bebeu-lhe o sangue. Nessa refeição tinha ciúmes de quem também comia Eponina. A menina era um ser feito para amar até que se tornou moça e havia os homens (FC, 150)”.
Ou seja, o outro vem como espelho ou elemento a ser engajado na busca do eu de descobrir o mundo e a pulsação da vida. Tal movimento pode se dar de diversas maneiras, seja pela via da incorporação real ou a do olhar. Quanto a este último, temos o exemplo da saga vivida por Ana do conto “Amor”. Temos aí um olhar impactado e estarrecido, despertado pelo cego mascando chiclete, que abre caminho para a revelação do choque e da vertigem do viver: “Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror (LF, 39-40)”. No entanto, Ana vive um duplo movimento: se entrega, pois havia sido pega de surpresa, mas se afasta de tal “vertigem de bondade”: “Protegia-se trêmula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado – amava com nojo (LF, 37)”. Amor pelo mundo, genérico e vasto, vida que regurgita – e não alteridade que se instala na diferença.
Tal movimento é análogo ao vivido a partir de outra forma de incorporação recorrente nos textos clariceanos. Trata-se de lidar com a alteridade em uma esfera animal, marcada essencialmente pela contraposição ao humano. Seres a priori sem palavra, os animais sublinham o fato de que o sujeito estaria fadado ao não encontro recíproco com o outro, ser de linguagem por excelência. Esfera -a animal- que precisa, no entanto, ser domada e dominada, apreendida. Como, por exemplo, como se observa em “A quinta história” ou através da barata de A paixão segundo G.H. Em G.H., há a aproximação do amor com a imobilidade do tédio e da monotonia, como se ‘amor’ fosse uma profundidade que transcendesse o objeto de amor e se direcionasse para o mais amplo do mundo e sua materialidade: “Eras a monotonia de meu amor eterno, e eu não sabia. Eu tinha por ti o tédio que sinto nos feriados” (GH, 186) ou ainda “O tédio profundo – como um grande amor – nos unia. E na manhã seguinte, de manhã bem cedo, o mundo se me dava. As asas das coisas estavam abertas (GH, 187)”.
Assim, o que se busca não é propriamente o encontro com o outro, a troca possível; mas pura projeção e espelhamento, na busca de “transmutação de mim em mim mesma (GH, 201)”. E justamente aí permanece o ser, preso na especularidade narcísica do reflexo de si no outro que não deixa de ser a projeção do eu. Mesmo quando uma saída possível parece se delinear, como em “Amor”, ao breve pulsar do mundo segue-se o movimento de refúgio no cotidiano conhecido e confortador. Do eu estilhaçado para o mundo revelado e de volta desse mundo para o eu protegido no ‘antes’ haveria espaço para a verdadeira alteridade e algum amor maduro possível? Talvez não.
Obras de Clarice Lispector:
OL 1946 O lustre. Rio de Janeiro: Agir.
CS 1964 A cidade sitiada (1949). 2 ed. Rio de Janeiro: José Álvaro Ed.
AV 1973 Água Viva. Rio de Janeiro: Artenova.
GH 1974 A paixão segundo G.H (1964). 4 ed. Rio de Janeiro: José Olympio Ed.
VC A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Artenova.
CI 1975 De corpo inteiro . Rio de Janeiro: Artenova.
LE 1977 A legião estrangeira . Rio de Janeiro: Ed. do Autor.
HE 1978 A hora da estrela (1977). 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
SV Um sopro de vida. Pulsações. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
BF 1979 A bela e a fera. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
OE 1980 Onde estivestes de noite (1974). 3ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
ME 1982 A maçã no escuro (1961). 7 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
UA Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969). 13 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
DM 1984 A descoberta do mundo . Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
FC 1987 Felicidade clandestina (1971). 5 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
LF 1990 Laços de família (1990). 21 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves.
PCS 1992 Perto do coração selvagem (1944). 15 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves.
[1] Serão utilizadas abreviações das obras de Clarice Lispector (ver final do texto), seguidas dos números das páginas da edição correspondente.
[2] Olga Borelli, Clarice Lispector. Esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 13.