Sobre o banco

Ela não sabia que ele tinha ido ao cais. Havia saído de casa há já duas horas. Por onde andava esse menino? Essa era a questão que se fazia há anos. A dúvida cercava o espaço: onde? Estava cansada de procurar. Cansada de esperar. Cansada de se importar.

Perdido em alguma viela, como sempre. Ele queria aproximar-se do coração das coisas. Vivia sempre nessa busca, a inútil. No entanto, percebera agora – só agora, no fim – que jamais conseguiria penetrar nada. Nem ao menos sua mulher ou seu calmo desespero.

Ele ia saindo de casa com a velha intenção de dobrar a esquerda, descer a ladeira dos bares, passar pelas meninas e meninos ingenuamente jovens. Iria ao parque. Como sempre.

No entanto, houve o desvio.

Agora é que percebia: lentamente preparava-se para este momento. Para o inescapável reencontro com as suas mãos frouxas, murchas, caídas molemente sobre as teclas negras. Elas já não podiam mais, e pior: já não queriam mais o que ele próprio queria. Havia um buraco, aquele descompasso que jamais pode existir entre o que ele queria e o que elas desejavam. Deixou-se levar.

O que aconteceu foi que não suportava a visão daquilo, daquele nada. Aquele nada que insistia em existir por detrás do som que muito a custo ele extraía das teclas. As negras e também as amareladas.

Às vezes se dava conta de que as pessoas são como teclas de um piano: há os olhares obtusos, enrustidos, ocultos, ciganamente dissimulados; e há aqueles luminosos, brilhantes, angelicais: os negros e os amarelados. E o olhar diz tudo de uma pessoa.

Recomeçou o diálogo. Aquele som de vozes que se alternavam e que o perseguiam incansável e preguiçosamente há décadas. Desde a infância longínqua na beira do mundo.

Elle:    – Nunca você permitiu que eu tocasse nos seus brinquedos.

Lui:     – Sempre você quis me culpar de tudo o que você não foi capaz de possuir.

Elle:    – A posse não existiu entre nós.

Lui:     – O poder ronda os seus menores gestos. Você tem a habilidade mestra, que é a de inculcar no outro a vontade de te seguir e te servir e te idolatrar.

Elle:    – Não sabia que você me odiava.

Lui:     – Você sabe que o amor tem todas as formas.

Elle:    – O juramento que você fez…

Lui:     – Eu era criança.

Elle:    – Você deixou de cumprir o que era sagrado.

Lui:     – Eu era a criança que você sabe. E você sabe também que foi ela que nos obrigou.

Elle:    – Ela só obrigava a você.

Lui:     – Por isso você sempre achou que ela era só minha mãe.

Elle:    – Eu cresci e deixei de ser filha. Não quero ser filha daquela mulher.

Lui:     – Você é filha.

Elle:    – Sou uma mulher.

Lui:     – Você mentiu todos esses anos. Você enganou. Onde esteve perdida todos esses anos? Anos de súplica, de suplício, de solidão. Ela morreu sozinha. Ela foi morta sozinha.

Elle:    – Ela sempre foi somente sua mãe.

Lui:     – O que fizemos está feito. Não adianta se esconder atrás desse véu – seu labirinto de meandros e ausências.

Elle:    – Não fui eu que a matei.

Lui (pegando-a pela manga do casaco e quase torcendo-lhe o braço):

– Nunca mais repita essa palavra.

Elle:    – Você jurou nunca mais tocar em mim.

Lui:     – Não repita a sua fragilidade.

Elle:    – Perto de você eu sou forte.

Lui:     – Detesto a sua força, assim como a sua fraqueza.

Elle:    – …

Lui:     – Pare de fingir.

Elle:    – Cale-se.

Lui (dando-lhe um tapa abrupto no rosto): – Cala essa boca, a sua. Ou então

Elle:    – Você realmente continua o mesmo. Ameaças.

Lui:     – Você continua sendo a única pessoa que desperta esse demônio que há em mim.

Elle:    – Dizer isso é fugir. Você sabe como me manipula.

Lui:     – Eu não deveria pedir perdão. Mas não posso evitar.

Elle:    – Você sempre dizia que iria chegar a hora de partir.

Lui:     – Não há como evitar.

Elle:    – Você fala como se o destino existisse.

Lui:     – Só pode ter sido ele a nos unir dessa forma.

Elle:    – Você sempre acreditou no que quis acreditar.

Lui:     – Mas então, o que posso pensar? Ou o destino ou a loucura.

Elle:    – Você sempre achou que acreditava no destino…

Lui:     – O que você sabe do que eu acredito?

Elle:    – … enquanto que era a loucura que tomava posse das suas palavras.

Lui:     – Por que você faz o fim ser tão longo?

Elle:    – A separação sempre dói. Mesmo separar-se do sofrimento.

Lui:     – Eu não posso mais, Clara. Fique.

Elle:    – Eu vou partir e você sabe. E é o que você deseja.

Lui:     – Não me faça pedir novamente e sempre.

Elle:    – Adeus.

Lui:     – Vá.

No entanto, houve o desvio.

Desta vez, em vez de virar à esquerda, comme toujours, ele errou o caminho. Errou pelo caminho e foi andando. Cegamente não, pois que enxergava muito bem aonde aquilo tudo ia dar.

Desejava bordejar o cais e poder enfim sentar-se, tranquilo, a ver os navios. Nesses  momentos o que tinha era assim uma nostalgia do futuro.

 

Momento negro

Era um momento negro de se viver. Não era trágico. Mas tinha uma cor, aquele instante, e essa cor era o negro. Isso porque ele ficava horas e horas apertando aquelas teclas do piano, e as mais difíceis eram – são – as negras. Ele queria ficar tocando e compondo e retocando a dor lenta do seu declínio.

Por que ele haveria de pedir perdão ao destino por ter sido aquilo que fôra? Às vezes tinha a sensação de que vivia agora a penitência, o castigo. Por que depois do bem há de vir o mal? Ele já era maduro, mesmo velho: agora podia saber que não se vive só de sacrifícios e lástimas. Esse não é o preço de viver. Por que então essa sôfrega culpa?

Em alguns momentos, como este, chegava a pensar o absurdo: os deuses estavam punindo-o por tudo o que a ele tinha sido permitido vivenciar, experimentar. Por que será que ele tinha tanto medo da punição dos deuses? Como se fossem um bando de invejosos – se ele tinha instantes de plemitude aqui na Terra, eles começam a grunhir, como um bando de criança mimada.

Nada tem sentido. Mas então, por que a culpa?

Agora deixava-se invadir por esse caldo pegajoso. Esse rodeio, esse labirinto enganador. Até que, por fim, olhou-se no espelho e disse humildemente: cometi o maior de todos os pecados. E não consigo estar arrependido. O prazer é maior do que eu, vence a culpa.

Todavia, hoje ele chora frente às teclas negras do piano. As mesmas que lhe ensinaram tanta coisa… Realmente, ele jamais saberá qual é a loucura que perpassa a sua alma quase vazia.

Ah sim, é o dom de criar a harmonia mais perfeita, a representação da emoção mais pura, mais una. Por que viver sob esse jugo? Jugo da criação, que escraviza.

Eram tantos os porquês, que ele não mais tinha noção do que estava colocando em cheque. A sua carreira, a sua amante, a sua morte … o fim de algo.

Sentia muito nitidamente que o fim de algo vinha vindo, quase tão rápido quanto a passagem da lua naquele céu de madrugada bêbada.

Pegou a adaga que havia sido de seu pai, olhou-a pela milésima vez, tocou-a quase com carinho. Foi rasgando a pele do peito, como se abrisse um presente de natal. O sangue começou a manchar as suas mãos, o chão do cais, a água do mar.

Demorou muito, um tempo incontável, para que o corpo se debruçasse para frente.