Escrever a vida com Lacan
Dizer o amor talvez seja quase tão impossível quanto vivê-lo.
Este relato de Catherine Millot, no entanto, nos leva a imaginar que ela foi feliz ao menos na tarefa de traduzir em palavras algo do vivido e assim criar a tessitura imaginário-simbólica ao redor desses dois impossíveis, da ordem do real. O livro causou furor na França ao ser lançado ano passado e certamente continuará levando muitas camadas de discussão por onde passar: tanto por revelar bastidores do meio intelectual e analítico europeu nos anos 1970, quanto por ser o testemunho da história de amor entre Lacan e sua analisante e companheira dos últimos anos.
Ela abre o livro com um quase místico parágrafo sobre o ser e sua entrega que condensa todo o livro. Vale a pena retomá-lo: “Houve um tempo em que eu tinha a sensação de ter apreendido o ser de Lacan em sua essência. De ter uma espécie de intuição de sua relação com o mundo, um acesso misterioso ao lugar íntimo de onde emanava sua ligação com os seres e as coisas, e também com ele próprio. Era como se eu houvesse deslizado para dentro dele. Essa sensação de apreender sua essência ia de par com a impressão de estar compreendida, no sentido de estar integralmente incluída nessa sua compreensão, cuja extensão me ultrapassava. Seu espírito – sua amplitude, sua profundidade –, seu universo mental, englobava o meu como uma esfera que contivesse outra menor”.
Seu fascínio está nu e absorto, explicitando a posição do amor, seja ele de transferência ou qualquer outro -o que aliás traz uma questão inescapável para a psicanálise. Posição essa que vai formar a fantasia fundamental que a autora generosamente nos revela: a daquela que se deixa ser e conduzir a partir do interior do outro, livre e oceânica. Millot retoma neste livro, assim, sua própria obra, sobretudo as místicas de La Vie Parfaite, o enlace de psicanálise e filosofia e literatura de Abîmes ordinaires e o elogio do estar só, matéria da escrita, em O Solitude. Ou seja, a adolescente que sonhava ser “escritora e psicanalista” e depois, plena de angústia, “numa aposta de vida ou morte”, foi procurar Lacan aos 20 anos, acabou por realizar seu desejo -e vem a público nos contar mais um capítulo dessa história.
Ao longo de não mais de uma centena de páginas, Catherine fala de si, de sua análise, de Lacan -e tudo num estilo ainda amoroso, ao mesmo tempo que duro e cortante como um diamante. Sem dúvida Lacan é o personagem-título do livro, mas ao longo do texto, vemos adquirir densidade o milieu, retratado com finura e perspicácia, desde o talento categorizador de Jacques-Alain Miller e a ambição (“traição”) de Laplanche, até o estilo fidalgo e algo decadente de Masud Khan, discípulo e colaborador de Winnicott, à curiosa junção de “pantufas e metafísica” no lar dos Heidegger. Aborda ainda a condução “minimalista” de Lacan com o exercício do poder e sua controversa paixão/relação com a verdade.
Millot revela assim seu talento de observação clínica aliado a mais precisa verve literária, percorrendo, ainda, o universo dos museus e igrejas, destacando os quadros, esculturas e restaurantes que encantavam Lacan -sobretudo em Roma, Veneza e Paris. Além das diversas viagens e conferências dessa época, acompanhamos a rotina de Lacan e do casal tanto em Paris quanto na casa de campo de Guitrancourt. Um livro saboroso, aberto e inteligente.
E que traz aspectos mais íntimos. Catherine nos traz um traço de Lacan que se repetirá ao longo de todo o relato: seu desejo direto e decidido, este desejo “sem ambiguidades que o movia e simplificava tudo”. Aí se dá o que ela chama sua “simplicidade”, uma forma peculiar de se colocar no laço social excluindo a “dimensão da intersubjetividade que denominamos psicologia” e se colocando alheio a supostas interioridades e intenções. Ele simplesmente seguia sua rota, incansável. De faróis vermelhos a portas fechadas, de esposas a amantes, “não havia obstáculos” para ele.
No entanto -e aqui outro traço primordial- um dia Lacan bateu o carro na mureta da estrada ao tentar não perder a entrada: sobreviveu ele e seu amigo, o carro foi destruído. Abandonou o carro e o ato de dirigir. Lacan levava em conta o impossível: “Embora nenhuma proibição ou limite convencional o fizessem desviar de seu percurso, ele de todo modo sabia reconhecer o real que lhe barrava o caminho”. O real, eis aqui o objeto maior de seu interesse e que, ao longo desses anos 1970, irá cada vez mais lhe seduzir, a ponto do livro terminar por mostrar um Lacan imerso em um mutismo enigmático, sem cessar absorto na realização consecutiva de seus nós borromeanos. Como ele dizia, seu “noeud bo”, por homofonia a monte Nebo -“do qual Moisés descortinou a Terra Prometida e onde morreu”. Aqui Millot revela não só essa espécie de linhagem identificatória da psicanálise, Moisés-Freud-Lacan, mas também conta o típico périplo da ‘mulher por trás de um grande homem’ que banca o backstage sem crédito da produção: era Catherine a responsável pelas andanças nas seções náuticas da cidade para pesquisar materiais resistentes e maleáveis para o gênio de Lacan. “Com o passar do tempo, as correntes e nós se tornaram cada vez mais intrusivos. Lacan prosseguia com suas manipulações enquanto escutava seus pacientes, os nós atulhavam o chão de seu consultório”.
Millot conta a forma de Lacan criar e trabalhar, empilhando livros ao seu redor, tanto em suas mesas de trabalho, quanto nas mesas de cabeceira e duas outras que ficavam ao lado de sua cama. Ou seja, vemos uma profusão de mesas e pilhas de livros. Falando do seminário Joyce, o sinhoma, de 1975, ela aborda seu método. “Ao longo desses anos, seu ensino, mais despojado, alcançou uma clareza inédita. Procedia menos do que antes por digressões e mais por fulgurâncias, enunciados corrosivos que iam a contrapelo dos hábitos de pensamento”. Algo dessa espiral também aparece quando ela relembra o comentário de François Cheng, com quem durante bons anos ele discutiu a língua chinesa: “Creio que a partir de um certo período de sua vida o doutor Lacan virou apenas pensamento”.
É somente na penúltima página do livro que Catherine toca claramente no ponto mais delicado. Ao longo desses sete anos de vida em comum, ela continuou sua análise com ele. Como teria sido isso possível? Ela não diz muito mais. Mas chega a revelar um ponto que nomeia “a grande guinada terapêutica” em sua análise, que ao mesmo tempo revela a falta e o desejo. Falta e desejo esses que implicarão o fim, extremamente doloroso, de sua relação com Lacan: “um dilaceramento para mim, um terremoto para ele”.
E, ao final, poderíamos nos perguntar: o que levaria uma mulher, escritora, psicanalista a se deixar tomar pelo desejo, quase meio século depois, de narrar a experiência absolutamente singular de manter uma relação ao mesmo tempo analítica e amorosa com Lacan?
Ela conta, fora do livro, por ocasião do lançamento, no início de 2016. Fez sentido o convite do diretor da coleção “L’infini”, seu amigo e escritor Philippe Solers, para que ela escrevesse sobre “seu Lacan”. Millot entrava nos 70 anos, “a idade que tinha Lacan quando a conheceu” e não resistiu mais a esse apelo, de dar seu próprio testemunho sobre essa figura tão controversa e instigante.
E o faz de maneira tocante, sobretudo no final. O livro termina com a descoberta de uma espécie de profunda identificação com Lacan, como se aquilo que mantém a liga (imaginária?) do amor se revelasse para os amantes e para nós, leitores. “Sentia-me estranhamente em sintonia com ele, como se reencontrasse um antigo ideal de depuração máxima (…). Desde antes de conhecê-lo, eu era movida por uma busca do irredutível (…). As vaidades se consumiam num desdém por tudo, salvo pelo essencial”. E aqui a frase síntese: “A vida com ele era então como uma grande fogueira na qual desapareciam todos os falsos valores”. A miragem do ascetismo que busca a pura essência.
E assim Catherine termina como começou, com o sofrimento do luto e os soluços diante do cômodo verde em que, com a ajuda da memória e da escrita deste livro, reencontra na frase final “a integralidade do ser de Lacan”.