Conflitos e Violência: Entre bombas e 7×1
Algemaram meus sonhos,
Quando recusei todas as barbáries.
Mahmoud Darwish
Há momentos em que as linhas de força dos eventos se condensam e formam uma configuração rica o suficiente para não sair da memória, e virar uma história. Ela é feita de algumas cenas, mini-acontecimentos, às vezes muito banais, difusos e difíceis de serem percebidos em sua unidade autônoma de evento. Simples pedregulhos caídos por acaso aqui e ali da cesta de um peregrino sem rumo certo, que talvez se chamasse destino. Mas por vezes essas cenas se costuram e podem forjar uma narrativa. É a trama do presente que não tem porque encobrir a estrutura muldimensional do tempo e da História. Eventos que se condensam num aqui e agora, tão ínfimo, e que no entanto tem milênios. É um pedaço dessa história que vou contar.
I. Narrativa: Israel, 2014.
Tel Aviv fica à beira do mar. Era um belo dia de sol e fomos alugar uma bicicleta para passear. O dono da loja deu uma aula sobre o país e um roteiro para conhecer a cidade. A ideia era começar pelo porto de Jaffa, ou Yafo, um dos mais antigos do mundo. Era ali que chegavam as imensas toras de madeira que iriam sustentar o Templo de Salomão. Eis aí uma das bases sobre as quais se apoia Israel: o intrincado amálgama antigo x moderno. A Tel Aviv das start-ups pré-milionárias que nos oferece free wi-fi ao longo de toda a orla mediterrânea se fez ao redor de Yafo, com suas ruelas estreitas feitas somente para humanos e animais, num tempo que máquina não tinha entrado nem no imaginário ficcional. Esse o primeiro mergulho.
No almoço, encontramos T., brasileiro, judeu, que aos 15 anos havia decidido fazer a Aliah. A Lei do Retorno permite a ele e a qualquer judeu ser cidadão em Israel. T. vivia num kibutz, ao norte, nas colinas do Golan; e gostava muito de sua vida lá. Estava de férias, extraindo o máximo de seus últimos 30 dias antes de entrar para o exército. Como todo cidadão israelense, meninos e meninas, aos 18 anos há que servir três anos nas forças armadas. Todos. Foi outra aula sobre Israel e os impasses do sionismo socialista, vistos sob a ótica de um jovem antenado, politizado e profundamente implicado no cenário. A alegria do encontro talvez se multiplicasse com as cervejas e o calor das teorias e debates: de música e amor às atuais diatribes políticas, passando pelo sofisticado e salvador sistema antimíssil.
À tarde, a parte central de Tel Aviv: a conhecida “cidade branca” com seus edifícios modernistas e cheios de sonho da Bauhaus, de um tempo em que as ideias de projeto e cidade não eram antagônicas. Elegantes –e hoje tomados por endereços de luxo, esse epicentro do capitalismo- boulevares arborizados se cruzam em praças que normalmente abrigam monumentos de densa significação para a longa história do povo de Israel: uma figura bíblica ancestral, um museu, um líder assassinado no final do XX. Estávamos numa das mais novas, modernizada e florida –milagre da determinação no meio do clima desértico de quase 40°C. Centro de cultura, com foco em teatro, música e dança. Toca um sinal. Alto. As pessoas começam a correr. Não. Algumas correm. A gente também, sem entender. A maioria anda, calma. A calma do gesto repetido. É dentro do grande teatro, no coração do Auditorium, que ficamos vendo uma pequena exposição de cenários de teatro em miniatura e onde o guarda nos dá uma noção vaga: foi uma sirene, agora está tudo bem. As mães pegam seus carrinhos de bebê, os jovens pegam seus instrumentos e todos saem andando. Nós pegamos nossas bicicletas e saímos andando, com um estranhamento no corpo, uma sensação de continuar a ver cenários de teatro, de estar vivendo uma cena que não estava no script.
À noite, tinha o jogo do Brasil, Copa 2014. Ficará para sempre na memória: saindo do hotel de camiseta inescapavelmente amarela, cruzando hóspedes, recepcionistas, porteiros, transeuntes, turistas, pessoas unânimes e solidárias: Brazil, Brrazil, Brrrazzill. Como o Brasil desperta simpatia! (Algum marketeiro ou psicólogo ainda vai saber transformar esse fenômeno num asset rentável e nos ajudar a capitalizá-lo de forma industrial). A impressão era que nós, e todos os outros, torciam para o Brasil; os alemães, para a Alemanha. Aquela euforia no ar. Euforia aliás que sempre parece querer se sobrepor ao real.
O ponto de encontro para ver o jogo era o Banana Beach. Lugar apropriado para se ver um jogo de futebol do Brasil. E que ao final se revelou ainda mais apropriado. Era um bar na areia com dois telões imensos, o mar ao fundo, e uma agradável noite de verão. Os telões passam propagandas e notícias. O clima esquenta, pedimos bebida. Encontramos os amigos, e novamente T. Ele está transtornado. Tenso. Sua sirene da tarde não foi light como a nossa. Ele estava dentro do trem e disparou o grau de alerta máximo: o trem para e os passageiros se jogam no chão, imediatamente. Uma bomba vai explodir ali perto. Talvez em cima da sua cabeça. Seu corpo treme ao contar a história. O jovem assertivo da tarde se desmanchava naquela noite. Era alguém aterrorizado que estava ali. Não era mais uma criança, nem um adolescente, nem um jovem feliz. Era um homem que iria mergulhar na realidade em algumas semanas. Um homem que aprendeu alguma coisa. A inexorável seta da consciência.
Escutando T., meu corpo ficou pesado. Começou a me dar uma espécie de frio. T. e Ruth olham fixamente para a tela. De repente um estrondo. Espécie de lanças de fogo cruzam o céu. Disparo e estrondo. O que é isso? É aqui? O conflito não era em Gaza? O que vemos e ouvimos é reproduzido na tela. Não entendo hebraico mas sei que o tom do noticiário é tenso. O que eles estão dizendo? “Você não quereria saber o que eles estão dizendo”.
Como os foguetes não deixavam de atravessar o céu, foi ficando claro: eles estão dizendo que se está tentando atingir Tel Aviv e o centro de Israel. Tel Aviv em risco, o sionismo, o projeto, o judaísmo, a Bauhaus, a cidade, as pessoas, o país. Eles estão dizendo que começou uma nova operação de guerra: Protective Edge. Margem protetora é uma denominação perfeita, perfeita e patética. Cada vez protege menos. Ao mesmo tempo que enuncia um desejo profundo, uma crença profunda –talvez delirante- de que essa operação trará a proteção tão almejada. Calma, eles estão 15km ao sul. 15? Calma. No entanto, não era isso o que se sentia aquela noite. Espraiava-se aquela tensão no ar quando se sabe que algo não funcionou. Algo deu profundamente errado. Sem querer, sem entender muito bem, sem dominar muito bem os elos da corrente, algo se quebrou. Estão atirando em Gaza; rockets de Gaza, e parecem muitos rockets de Gaza, são disparados sobre Israel. O jogo começou.
Digo em voz alta: estou agoniada. O que não muda os fatos nem alivia. Bebemos cada vez mais. Escutamos emocionados o hino nacional. Alegria, nervosismo, cantamos os raios fúlgidos do outro lado do oceano. Vemos na cara dos jogadores que eles também estão tensos. Sim, começa o jogo. Vai Brasil! Bola solta, gira rola. Poucos minutos de jogo. Brasil toma um gol. Alegria cortada. Ceifada é a melhor palavra. Um pouco abrupto, algo gela. Digo de novo: estou agoniada. Vai ser difícil virar o jogo. Virar a mesa. Força Brasil, vamos lá. O cerco parece estar estreitando mas vamos acreditar na nossa força, potência, arte, e, por que não, sorte. O jogo continua. Logo vem outro gol. Que? O que é isso? Como reverter? E vem outro gol. E mais outro. Mais foguetes no céu. A televisão do fundo do bar mostrava os repórteres diante dos rockets e dos escombros. Mais vozes de inquietação. Gol?? O que? Viro para o lado: você pode por favor me explicar que diabos está acontecendo? Você pode por favor ordenar a realidade para mim pois que nada mais faz sentido?
Surreal. Esse o momento em que voltamos a ser uma criança absolutamente desamparada e que não consegue entender nem agir em direção nenhuma. Paralizada. T. fica branco. Vai desmaiar? Eu branca e fria. Um misto de medo e impotência. A alegria, a euforia, o sol. Cadê? Eu, ou todos: uma criança atônita que havia ganho um brinquedo novo e que tinha acabado de se espatifar no chão. E não era só o brinquedo que tinha quebrado. Era a ideia de que a vida podia ser boa e simples. 7 x 1. Lavada irreversível.
Disparos mortais contra seu corpo, sua cidade, seu país.
Nossa crua condição: vulneráveis.
A sensação de gosto amargo no fundo da garganta era real. Continuava, como quando a gente acorda e pensa: não, não era sonho; está acontecendo isso mesmo. Mandamos email para o agente de viagem: sim, era isso, mesmo perdendo o nosso evento em Jerusalém -motivo da viagem-, estávamos decididos. Vamos abortar o projeto e voltar para casa. Contra a instabilidade crua do presente, o aconchego do lar.
Fomos na loja devolver as bicicletas. O dono da loja, sempre muito ágil, não se fez de rogado: falei que o Brasil ia ganhar, claro, e por pouco não ganhou. Falei que a situação aqui estava tranquila, e sim, está. Não não, não se inquietem. Olha só, vou mostrar o gráfico. Três cliques na internet e um mapa de Israel com distribuição de risco. Gaza era vermelho. Arredores, laranja. Tel Aviv, Jerusalém, verde. Tranquilo. Nós respiramos aliviados: ah Tel Aviv, verde. Sim, verde. É um alarme de três minutos. Não de dez segundos. “Vocês têm três minutos. Dá tempo de descer da bicicleta, colocar o cadeado e andar calmamente até o abrigo”. Talvez a melhor fala da viagem.
O agente de viagem respondeu: U$ 2000 e umas taxas para antecipar o bilhete de volta. Conversas, ponderações, consultas. Decidimos ficar.
O hotel em Jerusalém era imenso. Na frente do hotel, ficavam muitos, inúmeros carros de polícia. Dentro, dois andares inteiros de soldados. O conflito estava se acirrando, e os reservistas estavam sendo chamados. O café da manhã, o lounge, o bar, a piscina, o spa, enfim, todo o espaço estava tomado por jovens de bermuda e fuzil. Ou com uniforme e fuzil. Não sei se o mais peculiar era essa companhia na piscina ou no elevador lotado, onde se esbarrava nas armas. Foi o contato mais próximo até então com uma sociedade altamente militarizada, num estado de guerra ou de exceção permanente. O que talvez seja a lógica da exceção -sua própria permanência- como já nos disse Agamben. Muitas conversas, não com os soldados, mas com os atendentes do hotel, taxistas e vendedores foi nos mostrando cada vez mais o tamanho e a complexidade do buraco. Você é israelense árabe, seu irmão é do Hamas e sua namorada é do IDF, o exército israelense. Você teme por todos e por si mesmo. Não queria estar nessa situação e não sabe muito bem onde deveria estar.
Na piscina, alarme. Calma, por aqui, desce essa escada, garagem. Pronto, pode voltar. Iron Dome interceptou o rocket. Ok, pode tomar sol. “Normal life” é o lema, inclusive o lema ao qual eles se agarram profundamente para poder criar a ideia de uma “life”. Keep walking. No bar, alarme. Durante o banho, alarme. Desliga o chuveiro, dá uma secada e coloca uma roupa qualquer. Rápido. Três minutos para ir para o shelter. Era um bom hotel, tinha um abrigo em cada andar. Que bom não estar com meu filho nessa viagem.
Entrando na Old City, cruzando o Jaffa Gate, eclode um barulho. Sirene talvez próxima, talvez distante. Não dava muito bem para ter uma noção clara das métricas ou proporções. Uma fumaça negra e gigantesca subia no céu azul transparente, lá longe. Longe mas visível. Um incêndio imenso. Talvez um posto de gasolina atingido. Sistema sofisticado, caro e falível: o Iron Dome era de vidro.
De madrugada chega uma mensagem no celular: a família no Brasil, em pânico, diz que eles tinham fechado o aeroporto internacional. Assustados, ficamos meio zonzos por algumas horas diante da tv e da internet tentando entender o que estava acontecendo, ou melhor, quais os limites do que estava acontecendo. No final, sim, haviam fechado. Mas reabriram. Continuamos a entender sem entender, nem os fatos nem as causas, nem as cadeias dos fatos e das causas.
No outro dia, era final de tarde e andávamos na parte árabe do shuk. Aquela vibração profunda dos mercados de rua: aquele movimento frenético de tudo, em sua dança de sons, cheiros e cores. Uma profusão maravilhosa de vida e acontecimentos. Era um momento condensado de alegria. Tomávamos um arabic coffee com cardamomo, num lugar aconchegante forrado de tapetes vermelhos nas paredes. Uma luz bonita e de novo o futebol na televisão. De repente, um estrondo e muitos gritos lá fora. As pessoas festejavam, pulavam, berravam, davam murros no ar. Será que foi gol? Qual o jogo?
O que aconteceu?, pergunto ao menino que servia a mesa. “Hamas hit Israel”. E era festa. Eles riam, eufóricos, felizes. A doce euforia do ódio. Os policiais israelenses logo chegaram. Eles eram rápidos, brutos, armados, cercavam as saídas e controlavam a agitação. A crua saliva do ódio. A não-compreensão não era somente nossa, dos estrangeiros. Era de todos e de cada uma das partes. Jogo estruturalmente perverso.
Não deve ser fácil dormir com o inimigo. O tempo todo, e para ambos os lados. Nesse momento a história se revelou, fresca, inteira, pornográfica. E, ao final, deu sentido para todo o resto, desde o início.
II. Ancoragens identitárias: judeu, islâmico, russo, brasileiro
O homem não está disposto a renunciar à perfeição narcisista de sua infância;
e quando, ao crescer, se vê perturbado pelas admoestações de terceiros
e pelo despertar de seu próprio julgamento crítico, de modo a não mais poder
reter aquela perfeição, procura recuperá-la sob a nova forma de um Eu ideal.
Freud, “Narcisismo: uma introdução”
O movimento de “constituição subjetiva” é inevitável. Não há como não se esfalfar para se tornar sujeito – e sujeitos humanos: oriundos, reprodutores e por vezes criadores de códigos simbólicos humanos. Talvez gostaríamos de prescindir, mas não deixamos de precisar de adjetivos para “ser” algo. E a gramática nos ajuda com sua nomeação: predicativo do sujeito. Aí um dos dilemas da subjetividade: precisar de identificações -mais ou menos imaginárias, mais ou menos simbólicas, quase sempre miragens organizadoras- para ser algo, isto é, um eu. Que não tem como não ser isso contrapondo-se logicamente àquilo, ao outro. Polarizações que podem nos parecer necessárias, mas que talvez já carreguem consigo a necessidade de oposição a seu elemento imaginariamente contrário, numa lógica binária sem fim.
Lógica binária que, sim, não deixa de ser a origem de toda a ordenação de sentido, que por sua vez precisa de oposições para construir a vasta rede de significação. Dia e noite; sol, lua; masculino, feminino. Não se fundou aí, há milênios e em espelhamento à natureza mais circular, a ideia de que Apolo rege o sexo solar e mandatário, frente à errática, instável e cíclica fêmea? Se essa associação metafórica nos parece crua demais, podemos pensar em outra igualmente de forte materialidade: branco versus negro. Ou superior x inferior, nobres x plebeus, ricos x pobres: ao longo dos séculos, várias formas de nomear. Ainda hoje sofremos para tentar colocar nossas mentes em outros trilhos. Nas questões de comportamento, digamos, parece que em alguns lugares há avanços. E a cada qual, seu gozo. Quando vivemos mal, no entanto, e o fantasma da miséria nos persegue, parece ser impossível. Resvalamos rapidamente para duplas malévolas, maniqueístas e excludentes. Nós x eles, arianos x judeus. Nós: grande império, nostálgica glória, futuro promissor x vocês: rebotalhos ambulantes perdidos numa nesga de terra.
Sim, sou russo. Quero ser russo. Ou talvez, consciente ou inconscientemente, fui, sou e serei para sempre parte do grande e eterno Império Russo. Algo sólido e forte, que carrega consigo a sombra ao mesmo tempo brilhante e nostálgica do que um dia fomos.
E essa estrutura se repete, com variadas gamas de complexos gatilhos históricos. Surge em mim um desejo e uma convicção: sou e de fato sempre fui isso. É importante para o Eu essa afirmação identitária radical e fantasiada: aí o que Freud chamaria um Eu Ideal, espécie de projeção fetichizada de um Eu que teria tido no passado a miragem de sua maravilha que o passar do tempo não teve como manter de pé. Todos nós, pobres mortais, somos seres decaídos por natureza. Subjetivamente viemos daí, de uma fantasia idealizada de si -subjetivamente necessária, fundante e fundamental- pois matriz da formação egoica. Como fazer o luto da ideia de Eu e, mais radicalmente, da ideia de um Ideal? Pois só por ele é que se mata e se morre, ao mesmo tempo que pela consciência desesperadamente negada da perda dele. Ou seja, o Ideal é nossa perdição.
Tal qual o sebastianismo lusitano. Mais houvera, lá chegara. Ou o nosso próprio complexo tupiniquim para sempre abortado e reconstruído de país do futuro ou, ao menos, país do futebol. As eleições e os embates cotidianos, a luta contínua entre a imagem de avanço e retrocesso. Cada discurso, cada rosto, cada partido buscando alinhar-se àquele e jogar sobre o outro este. Brasil da ordem, do progresso e de vasta potência.
Enfim, é difícil abandonar as ilusões que nos ajudaram a “ser”. É difícil crescer. Atualmente, parece que retrocedemos. Em termos de território, cultura, Weltanschauung, política, temos macro-categorias, formas de tentar nos escorar que, ao invés de manter a complexidade inevitável dos tempos e espaços, reduz os conflitos a dualidades. Um dos eixos fundamentais dessa lógica ainda responde pelo par Oriente-Ocidente. Ambos os lados –lados?- constroem, por processos cada vez mais estudados, imagens de si e imagens de seu avesso, que são acalentadas sobre o Eu ou projetadas sobre o Outro. Orientalismo e Ocidentalismo. Não por acaso títulos de importantes obras que desenham as filigranas desses longos processos. Por vezes surge a certeza de que se está a gerar um desconhecimento e, assim, um ódio irrestrito a esses dois lados da (mesma) moeda.
Digo “mesma” pensando na ideia de civilização. Embora, sim, ironicamente compreenda que um dos bastiões da luta seja a ideia de moeda e de mercado. Judeu x palestino; judeu x árabe; cristão x judeu x muçulmano; estado laico x estado religioso. Os conflitos identitários grassam. Conflitos identitários que se ancoram sobre conflitos socioeconômicos e conflitos socioeconômicos que se amparam em conflitos identitários, num pêndulo dialético que parece não ter fim. E que vêm à tona atualmente com uma força irrefreável, e em alguns territórios com uma violência brutal. A bárbarie atrai? Temos medo.
ISIS. Estado Islâmico. Califado. Várias formas de nomear o desejo de construir algo digno, superior, correto, distante de todo o lixo e devassidão que está do lado de lá da linha. O Estado sob Islam será o bem e destruirá de forma nobre e santa a corrupção que é você. Não é a jihad? O outro é sempre vil. Em nome disso, matar e matar bem. Com ênfase, com violência, com força. Estágios de civilização? Falo deste lado. Só posso dizer: talvez. Apego desesperado a uma ideia geral e platônica de bem supremo que autorizaria a tudo destruir. Como parece simples acender as brasas da engrenagem fascista… As identidades estão todas aí para ajudar a nos acorrentar.
Enfim, acusações, conflitos, violências, destruição: magma sobre o qual pisamos. Que forças são essas?
III. Algumas notas sobre a violência
Presentemente, parece estar condenada ao fracasso
a tentativa de substituir a força real pela força das ideias. (…)
A guerra se constitui na mais óbvia oposição à atitude
psíquica que nos foi incutida pelo processo de civilização.
Freud, correspondência com Einstein, “Por que a guerra?”
Depois da Grande Guerra, assustados com o tamanho do estrago e com medo de haver novos conflitos sangrentos, a Europa cria a Sociedade das Nações, a fim de colocar as partes em diálogo e assim prevenir uma nova guerra. A partir daí, instala-se o Instituto Internacional de Cooperação Intelectual, que pretendia colocar em contato as melhores cabeças para ajudar a pensar os problemas centrais da época. Einstein trabalhou por anos no Instituto. Pensou no nome de Freud para debater a questão da guerra, o que levou a uma troca de correspondência entre os dois, em 1932, publicada com o título Por que a guerra?. Como podemos deduzir, as melhores cabeças e dois dos instauradores de novos pilares de compreensão do humano no século XX não foram capazes de evitar a chacina que foi a II Guerra Mundial.
A guerra é uma ‘necessidade’ humana e está instalada esplendidamente no coração de nossa estrutura mental? Essa não deixou de ser uma das questões debatidas nessa correspondência. Einstein desenha de forma clara as linhas de força em jogo no combate à guerra, chegando a uma objetiva constatação: mesmo havendo muitos esforços para prevenir a guerra e trabalhar pela paz, ela não acontece. Isso mostra que deve haver “fortes fatores psicológicos” que paralizam a instauração da paz. E é aí que se dirige a Freud.
Freud acompanha a discussão e por fim retoma sua teoria das pulsões. Ele havia postulado dois grandes grupos de moções pulsionais: as pulsões que agregam, unem, edificam, isto é, pulsões de vida; e as pulsões que desintegram, separam, destroem, que ele chamou de pulsões de morte. Ou seja, sim, carregamos no coração de nosso ser, forças destrutivas que foram e são necessárias para nossa sobrevivência. É a partir daí que Freud deduz sua logística: para não haver destruição e guerra, é preciso contrapor a elas sua força antagonista, ou seja, Eros. Eros no sentido que lhe dava Platão no Symposium, força basal de vida, de ligação entre as coisas e os seres. Freud situa dois grandes tipos de vínculos emocionais regidos por Eros: o amor e a identificação. Amor no sentido que o próprio cristianismo lhe dá, “Ama a teu próximo”, ligue-se a ele. E a identificação como compartilhamento de interesses importantes, que irá propiciar a comunhão de sentimentos, base da estrutura da sociedade humana. Freud arrisca um segundo caminho: já que há diferença entre os homens, que se organizam entre os líderes e os liderados (os que dominam e os que se submetem), é preciso educar bem “a camada superior dos homens dotados de mentalidade independente, não suscetível de intimidação e desejosa de manter-se fiel à verdade, cuja preocupação seja a de dirigir as massas dependentes”. Mesmo supondo-se que exista tal homem dadivoso, Freud, de certa maneira, retoma o ideal clássico da elevada educação do herói ou do príncipe, enfim, da figura de um ser dotado de qualidades superiores (e que ainda gostaria de conduzir os demais, inferiores). Interessante colocação de um homem bastante realista, e bastante cético no tocante à potencialidade “democrática” da espécie humana. Freud vê uma terceira possibilidade para acabar com a guerra: subordinar as pulsões ao domínio da razão. “Nada mais poderia unir os homens de forma tão completa e firme, ainda que entre eles não houvesse vínculos emocionais. No entanto, com toda a probabilidade isto é uma expectativa utópica”.
E como, ainda assim, temos o mais puro sentimento pacifista, a repulsa da ideia da guerra? Aí Freud retoma sua tese central, presente, com algumas variações, em todos os seus textos sobre sociedade. Em primeiro lugar, há um processo inexorável de “evolução cultural”, e este avanço da civilização provoca modificações importantes em nossa estrutura psíquica. Elas se dão em duas direções, complementares: há um progressivo deslocamento dos fins pulsionais (o que nos levaria justamente a nos afastar de formas ‘primárias’ de satisfação pulsional, caminhando em direção à sublimação e ao próprio desenvolvimento da cultura); e há uma cada vez maior limitação imposta aos próprios impulsos instintuais. “Sensações que para os nossos ancestrais eram agradáveis, tornaram-se indiferentes ou até mesmo intoleráveis para nós”. Assim, o caminhar da civilização traz consigo modificações irreversíveis em nossos ideais éticos e estéticos. Seres civilizados que somos, carregamos duas grandes marcas psíquicas: o fortalecimento do intelecto, que começa a governar a pulsão; e a internalização dos impulsos agressivos, que não são mais, portanto, naturalmente escoados nem admirados. Pelo contrário. “Nós, os pacifistas, temos uma intolerância constitucional à guerra”.
Não à guerra. Não à dominação. São conceitos profundamente internalizados. A ideia de haver qualquer tipo de dominação do forte sobre o fraco nos parece, além de injusta, vil. David e Golias: esculpimos e torcemos por David. O ideal da força absoluta não reina mais soberano. E, junto com esse aspecto, surge cada vez mais cristalina a ideia de conscientização da fragilidade do vivo. A vida é tão rara. Uma confluência singular, única, que por um triz se fez e por um triz pode deixar de respirar. A vida da célula, de um ser, de um agrupamento ou do planeta. Talvez agora, quase cem anos depois da troca de cartas entre Einstein e Freud, estejamos mais do que nunca próximos de possibilidades reais de destruição, em todas as escalas (inclusive e assustadoramente, macro). À bomba atômica, que assustava Einstein –susto que impulsionou seus últimos anos de trabalho e engajamento- juntam-se as mini-bombas diárias que emitimos de nossos veículos maquínicos. E que, juntas, bombardeiam nosso ar que, invólucro maciço e coligado, encosta em todas as outras moléculas, causando efeitos enigmáticos e catastófricos. Enuncia-se, assim, um princípio ético duplo: a afirmação do valor soberano da vida como critério maior -vida do eu, do outro, da terra; e o imperativo de manejar a si mesmo da melhor maneira a fim de criar as condições de garantia da vida. Manejo de si que implica o trabalho de suas próprias pulsões -positivas e negativas, de vida e de morte-, seus ideais, suas fantasias, suas identificações, suas projeções e dependências. Quanto mais os indivíduos forem psiquicamente saudáveis, menor o risco de embarcar num delírio coletivo como o que sustenta a fantasia purista nazista, por exemplo. Quanto mais o sujeito sabe de si e seus limites, menos apto estará para entrar no alibi que toda fantasia representa para o escoamento pulsional, sobretudo a fantasia coletiva, sempre tão pregnante. Ele não precisará pegar carona em formatos paranóides, destrutivos ou esquizóides pois suas forças pulsionais estarão melhor reguladas e mesmo satisfeitas em ligações psíquicas mais criativas.
Não sei se podemos dizer que essas transformações psíquicas sejam unânimes ou mesmo majoritárias entre os seres de nossa espécie, mas essa parece ser o ponto no horizonte em direção ao qual caminharemos, como humanos. Nesse sentido, se sabemos o ponto, precisamos discutir melhor quais políticas –públicas e privadas- seriam interessantes para colocar a locomotiva histórica nessa direção. Voltando ao início da conversa, por momentos os fatos se cifram de tal maneira que podemos alcançar um vislumbre de totalidade e, a partir daí, traçar de forma mais consciente os roteiros que nos parecem mais interessantes para colher este e não aquele fruto da grande árvore. Não iremos escapar de uma discussão sobre formas de transformação das grades de conteúdo nas escolas, pois muito da formação psíquica humana se dá na instituição de ensino formal. Junto com estratégias de desenvolvimento de raciocínio lógico, ensinando meninos de 10 anos a decorar fórmulas de Bhaskara (que nem sei o quanto faz ou deveria fazer sentido para eles), talvez possamos ter espaço para que a Política seja debatida e problematizada. Desde ‘jogar lixo no lixo’ (e não na minha rua, minha praça, minha cara) e não bater no amigo até não, sabemos há milênios, não matarás.
Como me relacionar com o outro que habita o mesmo espaço que eu? Reconheço nele humanidade? Ele tem direito de existir? Judeus e palestinos foram pegos no redemoinho de uma inglória luta de morte há muito tempo. Algumas pessoas –classificadas em termos de raças, etnias, povos, conceitos que inclusive têm seu sentido posto em questão hoje- são pegas no redemoinho do imperialismo russo. Os elos dessa intrincada cadeia parecem tão enigmáticos que, num lapso de mágica macabra, um avião com 300 pessoas é simplesmente explodido. Em outra parte, mais a leste, pessoas buscam instaurar um Estado Islâmico, espécie de ‘outra’ forma de se organizar em termos civilizacionais. Estrutura que nossa mente não alcança e que, sem dúvida, nós ocidentais achamos uma forma de organização altamente arcaica nesses mesmos termos, civilizacionais, pois que ela parte de uma lógica transcendental, um Estado incarnado, a retirada pura e simples de direitos (para nós “sagrados”) e de partes do corpo que estariam envolvidas na sexualidade e no prazer. Enfim, para além de conflitos que eclodem que forma cristalina e violenta hoje, a questão insiste: como arbitrar os inevitáveis conflitos sobre tempo, corpo, força, território, trabalho e capital?
Claro, não podemos ser ingênuos e supor que o nosso pequeno (ou vasto) narcisismo não estará aí em jogo, e atrapalhará, como sempre, a jornada civilizatória. Nesse sentido, práticas terapêuticas psíquicas realizadas de forma ampla, horizontal e vertical, como política de saúde pública, talvez sejam importantes para propiciar ao sujeito melhor conhecer e canalizar seus impulsos, assim como, a partir deles, realizar conexões mais densas consigo e com o outro. Desde quase sempre o preceito grego “Conhece-te a ti mesmo” esteve no portal dos oráculos. Mais do que nunca ele é necessário, agora que nossa alienação constitutiva mostra potenciais destrutivos altíssimos.
Como barrar esse potencial destrutivo? Uma instância terceira e externa é fundamental: não há como viver no mesmo planeta respirando o mesmo ar sem a criação do conceito de “sujeito global”, com derivações políticas, psíquicas e jurídicas plenas. Somos um planeta e uma humanidade. Não viveremos bem sem levar isso às últimas consequências. Aliás, nem viveremos. É essa instância global que deverá arbitrar, em última análise, os conflitos e as formas de atravessá-los.
Qual encaminhamento conceder para a violência sempre foi uma das grandes questões da humanidade. Estamos obedecendo um modelo que retira legalmente a possibilidade do indivíduo de exercê-la e oferece o monopólio do exercício da violência ao Estado, guardião do poder de combater o mal. Resquícios metafísicos de uma lógica de manutenção da vida? Poderíamos, neste momento, ousar ainda mais e nos permitir pensar em um modelo diferente, cujo princípio central diria: a violência não deve ser exercida. A violência não é uma forma de argumentação ou coerção válida e não deve ser exercida nunca, por ninguém. Nem pelo forte nem pelo fraco, nem pelo um nem pelo grupo. Em última instância, esse princípio estaria na base de inúmeras práticas cotidianas, da “lei da palmada” –os pais não têm o direito de bater nos filhos- à interdição da produção de armas. Nem o indivíduo nem o Estado, nenhum grupo ou subgrupo, força ou subforça deve ter o direito do exercício da violência. Sobretudo a violência que extingue a vida, sempre frágil, por definição de existência. Enfim, a força do corpo físico não é um meio legítimo para se convencer alguém de algo que se deseja ou se julga correto; não é argumentação, é dominação. Nesse sentido, o critério da força, tão antigo, talvez primeiro, está sendo cada vez mais questionado no mundo e deverá ser paulatina, lenta mas inexoravelmente derrubado.
Delírio? Alguns dirão. Mas não se trata de piada ou bobagem ou fantasia infantil. É derivação lógica e analítica a partir de um estado de coisas. Pode parecer ilusão. A curto prazo talvez. Mas não há outra saída se quisermos que nossos filhos vivam mais que meio século.