A máquina de sonhar

Um menino, aos sete anos, sonhou com sua mãe: adormecida, com expressão muito calma, ela estava sendo carregada para o quarto e deitada na cama por duas (ou três) pessoas com bicos de pássaros. O menino acordou chorando e gritando.

Demorou décadas para que esse sonho pudesse finalmente começar a fazer algum sentido. Durante todo esse tempo ele continuou lá, jamais esquecido, pulsando em algum lugar entre a memória e os meandros obscuros da mente de seu sonhador. Freud agora era um homem adulto, entrando em seus quarenta anos. Ele tinha passado pelo que nomeou como uma das mais densas travessias da vida: a morte de seu pai lhe abriu muitas frestas e o impulsionou cada vez mais para o trabalho de decifração dos próprios sonhos.

“Para mim, este livro tem ainda outro significado subjetivo, que só pude compreender após terminá-lo. Ele se revelou como parte da minha autoanálise, como minha reação à morte de meu pai, ou seja, ao evento mais significativo, à perda mais pungente da vida de um homem”. Assim nasceu aquela que viria a ser uma das obras primas da cultura, e talvez um dos três grandes livros do século XX. “A interpretação dos sonhos” foi publicada —com o novo 1900 na capa — em novembro de 1899. A obra recebe agora nova tradução — de Paulo César de Souza- pela primeira vez em língua portuguesa direto do original alemão, editada pela Companhia das Letras. Por que “A interpretação dos sonhos” foi tão importante? Voltemos ao sonho do menino Sigmund. Fui fazer uma breve pesquisa na internet: “sonho com pássaro, gente com bico de pássaro”. Sonhar com pássaro é bom -sim, os sonhos são basicamente divididos em bons e maus. Pássaros trazem bons augúrios. Sim, sonhos são invariavelmente premonitórios de algo que vai nos acontecer, e, como sabemos, o futuro pode nos trazer coisas boas ou coisas ruins. Pássaros voam e estão sempre entre a terra e o céu, e assim, são mensageiros dos deuses. Por isso, se estamos falando de pássaros, estamos falando de deuses: são eles que estão nos enviando mensagens e que, portanto, serão boas. Pássaro é presságio de bons sentimentos, como amor, harmonia e sucesso. Ao propor à grande rede simbólica global a ideia “sonhar com”, ela imediatamente nos traz “sonhar com x significa y”. Uma outra forma clássica de fazer uso dos sonhos é -também o vendo como uma mensagem dos céus- supor que ele é chave para alguma guia, ou uma vitória, prática. Por isso, sonhar com animais é presente certo, e sempre dá para jogar no jogo do bicho. Ou mesmo fazer algum estratagema de conversão e interpretar elementos do sonho como peças de um quebra-cabeça que irão se transformar em bichos ou números de sorte. Ou seja, os deuses falam conosco e nos ajudam um pouco na vida, que é árida. Freud disse não a tudo isso. Inventou, numa tacada só, um novo método de leitura dos sonhos, uma nova posição (não transcendente) para o sujeito e uma nova forma de conceber o aparelho psíquico, a partir do inconsciente. O sonho diz daquele que sonha A rigor, o sonho não tem relação com deuses ou parentes, vizinhos, amigos ou inimigos. Com premonições ou futuros. Você sonhou com a mãe? A namorada? O filho? Isso diz de você. Sonhou com o chefe? O amigo? O primo distante? Isso diz de você, por vias diretas ou indiretas.

O sonho é uma produção psíquica do sonhador, e diz de seus desejos, invariavelmente inconscientes. O livro é um vasto compêndio que vai mostrando uma ideia central: o sonho é a realização disfarçada de desejos inconscientes sexuais e infantis. Por que? O inconsciente sempre esbarra, em alguma medida, no sexual e no infantil, tijolos fundantes da vida subjetiva. E que em alguma medida passaram por operações de recalcamento. Para contornarem o recalque e poderem vir à tona, as “formações do inconsciente” se disfarçam. As “ideias latentes”, conteúdos pulsantes do inconsciente do sonhador, buscam encontrar uma forma, conquistar sua “figurabilidade”, de modo a passar pela censura, essa deusa sempre atenta, e construir o “conteúdo manifesto” do sonho propriamente dito. E como se interpreta esse conteúdo que o sonho manifesta? Se não é por uma chave interpretativa pronta e já dada, uma tabelinha dos sonhos, como é que se chega a essas ideias latejantes? Pelo método clínico que Freud já estava desenvolvendo há alguns anos: a associação livre. Como decifrar os segredos dos sonhos?

Deixando sua mente associar livremente e viajar a partir dos elementos manifestos que conseguiram burlar a censura e se revelaram ao consciente. A psique voa. O que o adulto Freud associou às pessoas com bicos de pássaros do sonho do menino Sigmund? Que essa imagem lhe remontava a deuses egípcios com cabeças de falcão, de uma ilustração da Bíblia de Philippson, a Bíblia bilíngue, alemão e hebraico, que havia na casa dos seus pais. Pássaro é Vogel em alemão. E ele lembrou que ouviu pela primeira vez a palavra alemã “vögeln” -que significa ‘foder’- de um garoto com quem brincava, chamado Philipp. Esse exemplar da Bíblia de Philippson havia pertencido ao pai de Freud, que tinha feito nela duas anotações em hebraico. Uma, em fevereiro de 1856, dizendo que o rabino Schlomo, seu pai (isto é, avô de Freud), havia “entrado em sua morada celeste”. Outra, dia 6 de maio de 1856, dizendo que às 6 e meia da tarde havia nascido seu filho Schlomo Sigismund. Ou seja, Freud nasceu semanas depois da morte de seu avô e por isso recebeu seu nome. Quando Freud fez Bar Mitzvah, ritual de passagem judaico para a vida adulta, aos 13 anos, ele tornou seu nome mais germânico e o encurtou para Sigmund. Quando Freud fez 35 anos -segundo o costume da época, o século XIX, o real ingresso na maturidade- seu pai lhe deu esse seu exemplar da Bíblia de Philippson. Seu pai lhe fez inclusive uma bela dedicatória sobre a relação dos homens com deus e a relação de amor do pai a seu filho. Freud associou tudo isso (e mais ainda) e, assim, foi construindo a arquitetura geral dos sonhos, que se revela neste e em todos os outros analisados no volume e ao longo de toda a sua obra. Ou seja, o sonho arma a triangulação e a estrutura significante, de linguagem, em que o sexual, o infantil e o edípico se articulam de forma inexorável. Não é só o medo de perder sua mãe ou ultrapassar seu pai: o sonho remete ao enigma, à sexualidade, à filiação, à fragilidade, amparo e morte.

Tudo isso em um único sonho. Muito longe da esperança do jogo do bicho ou da generalidade de uma tabela de significados de sonho, certo? E essas três linhas do relato do sonho renderam muito mais pano para a manga: esse é um dos sonhos mais estudados e emblemáticos da psicanálise. Remeto o leitor à interpretação do próprio sonhador, assim como às inúmeras digressões dos estudiosos, clínicos e teóricos. Como disse o próprio Freud, sempre acabamos por nos deparar com o “umbigo do sonho”, aquele osso não só duro como impossível de roer até o final, pois ele vai se oferecendo e se esquivando sempre mais, de tal forma que poderemos passar nada menos que uma vida inteira a interpretar o mesmo inextinguível sonho. Você é responsável pelo seu inconsciente A partir desse e de inúmeros outros sonhos, a maioria do próprio Freud, “A interpretação dos sonhos” nos mostra os mecanismos pelos quais se opera o “trabalho do sonho”: o infinito cifrar dos conteúdos latentes, sobretudo via condensação e deslocamento, que buscam alcançar uma representabilidade e assim formar o sonho propriamente dito. Condensamos diversos fios dos conteúdos inconscientes em uma única migalha (como uma imagem/palavra que representa várias coisas), assim como as espalhamos e deslocamos nos infinitos fios que se tocam e deslocam sem cessar (como um conteúdo que vai se deslocando sobre diferentes elementos, numa metonímia contínua). Tudo para escapar das instâncias de controle e repressão. Mas não tem problema, pois o inconsciente é uma máquina de sonhar. E mais, o inconsciente é o trabalhador ideal, pois incansável. Ou seja, não há como não sonhar. Não há como escapar das pulsações de um inconsciente que se quer dizer e produzir. Ao final dessa magna obra, o autor nos apresenta o famoso capítulo 7, com a formulação da chamada “primeira tópica freudiana”, em que se apresenta sua primeira proposição do aparelho psíquico. Ele se desenha em uma arquitetura triádica, com as instâncias Consciente / Pré-Consciente / Inconsciente. Três instâncias que conflitam e dialetizam, assim como o Id, o Eu, e o Supereu da segunda tópica, surgida cerca de 20 anos depois. De qualquer forma, o sonho é a via principal -“via régia”- para se acessar as formações do inconsciente. Ele faz companhia a outros grandes formatos dos quais o inconsciente se utiliza para se apresentar, aos quais Freud dedicou, inclusive, outros livros na sequência. Produzimos lapsos e atos falhos (“A psicopatologia da vida cotidiana”), a piada e o humor (“O chiste e sua relação com o inconsciente”), os sintomas (toda a metapsicologia freudiana) e mesmo nossas criações (como analisa Freud nos textos sobre a sublimação, a arte, a poesia, o delírio). São todas formações psíquicas de acesso privilegiado ao inconsciente. Na clássica imagem: o aparelho psíquico humano é como um iceberg. Na vida comum e partilhada com os outros, pretensamente consciente, vivemos próximos à pequena pontinha que sai para fora da água, a ponta do iceberg. Às vezes temos vontade de mergulhar em águas mais densas e procurar por sentidos inusitados, mas muitas vezes nos apegamos desesperadamente ao fácil e ao conhecido, às velhas ideias e às velhas reações. Isso de fato demanda um esforço de alienação e ignorância e -quem sabe- mentira (o fake de hoje em dia). Sem nem buscar saber o que sustenta esse edifício, tomando tudo o que se apresenta “naturalmente” à consciência ou ao ego como a verdade. O problema é que não é assim que funciona o aparelho psíquico. Não, pois o sujeito não é o Eu. O sujeito é bem mais amplo e complexo. Essa a grande revolução freudiana. Tão fundamental que Lacan lhe chamou a “subversão do cogito cartesiano”: lá onde penso, não sou; e onde sou, não penso. Haveria melhor lugar do que o sonho para revelar esse trágico destino do homem moderno? E teríamos essa coragem, de se deixar ser onde não se pensa?

Esse o desafio fundamental num tempo em que o ser flerta com uma luta insana entre Pathos e Logos, jorrando emoções brutas sem capacidade de um pensar visceral. Teríamos coragem de exercer um ser e um pensar radicais, ancorados na busca da interpretação dos sonhos e do inconsciente de cada um? Pois só assim seremos sujeitos. Sujeitos adultos, maduros, trágicos e levementes perdidos, como inevitavelmente todo aquele que caminha na ousadia de não saber o caminho a priori. Sem certezas dogmáticas, sem delírios paranóicos, sem projeções baratas, sem colocar a culpa em ninguém. Sem o amparo do generalizado desejo do falso -de diversos matizes- que parece hoje estar tomando conta do mundo. Isso não é o inconsciente. Isso é regressão a um estado de fantasia primária e de não pensamento.

Sustentar o inconsciente em si é implicar-se em e com suas próprias produções psíquicas, suas sombras, seus desejos. Tomar a rédea de sua própria vida e fazer do sonho uma materialidade viva e atuante. É se responsabilizar por ela, no compromisso ético de se subjetivar continuamente, escutando a máquina do sonhar que nos habita. E que pulsa. Não preciso, assim, de inimigos nem de deuses; preciso de coragem para olhar no olho do furacão. Por isso “A interpretação dos sonhos” e tudo o que ela representa da coragem radical de um homem continuará sendo um dos livros mais importantes que a espécie humana soube escrever.