Ressentimento

Ressentimento é palavra-chave para ousar compreender o mundo hoje. Para escutar as camadas subterrâneas do contínuo re-sentir de uma mágoa e um lamento que parecem infinitos -e exigem desforra e vingança. Como se a culpa do que não somos ou não pudemos ser fosse sempre de um outro, esse bode expiatório que escolhemos quando não podemos nos haver com nossos próprios limites. E assim engendramos sociedades que se acreditam polarizadas e em que eleições podem ser decididas a partir do ódio e desejo de eliminação daquele que, para mim, é fonte de todo o mal. Como vivemos em um mundo em que os outros são um bando de bandidos e ignorantes diante dos quais não tenho outra alternativa lógica sem ser o desejo de eliminação? O livro é urgente pois nos ajuda a desvendar esses mecanismos.

Maria Rita Kehl traça um vasto panorama que pode nos ajudar a compreender nossa posição diante de conflitos entre deuses ou sistemas, desde a ascensão do nazismo de Hitler à da extrema direita atual, do hemisfério Norte ao Brasil de Bolsonaro. A autora trabalha com uma vasta rede de autores para mapear o campo complexo do ressentimento, este afeto que Spinoza chamou de paixão triste. Retoma as fundadoras análises de Nietzsche, Max Scheler e Freud, passando pelos olhares mais contemporâneos como de Hanna Arendt, Agamben e Zizek, que buscam o insondável de nossas vãs repetições. Ganhamos ainda, nesta reedição do livro de 2004, uma importante abordagem no novo (e atualíssimo) prefácio.

Não nos esqueçamos. O ressentimento não se confunde com a revolta ou com a luta por justiça e reconhecimento. Ressentimento não é ação que busca transformar. Ele é o canto queixoso do sujeito da modernidade e de todo aquele que projeta para fora de si, em determinado momento histórico, a fonte de seus males, como um mecanismo de defesa e escudo de proteção para preservar seu narcisismo. Como teremos a sabedoria de escapar do que Freud chamava de covardia moral? Quem sabe tenhamos a coragem e as ferramentas para atravessar um dos maiores desafios atuais que é justamente o poder se colocar além do ressentimento. Talvez possamos um dia trans-sentir e assim criar um novo modo de estar com o outro.