Função da filiação
“Quem sou eu?
Sou qualquer coisa de triste, qualquer coisa que chora, qualquer coisa que sente saudade. Tenho um humor seco, sarcástico, inteligente, sagaz, simpático e misterioso. Sou heterossexual e quero fazer amigos, conhecer companheiros para atividades e tecer contatos profissionais. Meu estilo é alternativo e casual. Sou branco e falo português. Minha religião é católica e minha visão política é libertária. Não fumo, bebo de vez em quando. Adoro meus animais de estimação. Moro com outras pessoas. Não tenho filhos. Faço aniversário dia 3 de dezembro, sou sagitariano. Minha cidade natal é o Rio de Janeiro.
Minha paixão é que sempre serei apaixonado por uma grande causa. Futebol, volei, mergulho são meus esportes preferidos. Escutar música e ir ao cinema, minhas atividades prediletas. Quando aos livros, amo todos do Monteiro Lobato, Charles Bukowski, Lewis Caroll… adoro sonhar com fantasias. Música: mpb em geral, bossa nova, anos 60, blues, jazz, rock, música eletrônica. Sou baladeiro de plantão. Na tv, assisto a programas de entrevista, filmes de suspense e ficção. No cinema, drama, policial e romântico. Italiana, francesa, espanhola e japonesa são minhas cozinhas preferidas.
Vou deixar aqui meu email, meu msn e meu blog. Tenho 457 amigos.
Minhas comunidades são: Eu sou gold (só Elite); Gostou? Mamãe e papai que fez; Quem não dá assistência…; Autógrafo? Só depois do show; Ligue o foda-se e seja feliz; Revolução 2007 Quem será vip?; A pegada perfeita; Amigos espíritas umbandistas; Olha a minha cara de preocupado; Jesus te ama; Clico em tudo o que vejo!; Seu Madruga curte a Marijuana; Billiot e Mandrix (3 pessoas, a menor comunidade da qual faço parte (são os filhotes do meu cachorro)); Eu adoro dar risada (a maior, milhões de pessoas); Sou assim e não vou mudar.”
“Hoje atualizei minha página no Orkut. Divulguei no meu blog: os acessos devem triplicar. Vou chegar nos 500 amigos. Talvez 180 fãs.”
“Hoje foi um dia difícil. Deu tudo errado.
Amanhã vai ser melhor. Força.
Não consegui atingir minhas metas. Mas hei de vencer. Preciso escrever isso para fazer algum sentido. Hei de vencer. Vou conquistar o meu sonho.
Ou será que não? Não posso escrever que tenho medo de não conseguir porque dá azar.”
“Não consigo fazer nada. Só dormir, tomar remédio e tentar não parar de ir pro trabalho.”
“Não está mais fazendo sentido escrever no meu diário. Não sei mais, aliás, o que faz sentido. Talvez nada. Não sei mais quem sou eu. Me sinto imerso numa gigantesca rede de aparências e agora percebo que minha vida é uma farsa. Por que não consigo parar de inventar? Sou sugado pelo universo genérico. Vivo imerso até a garganta no mundo das generalidades que não querem dizer nada. Acho que alguma coisa não está certa. Começo a desconfiar: devo ser uma grande mentira.
Sempre quis ser o bom menino, o exemplar, aquele que era melhor que os outros, o preferido da mãe, da professora e dos primos mais velhos. Eu era o ideal. Não sei mais como reproduzir isso, e fico me esforçando esforçando no fundo sabendo que tudo isso não vale de nada. Mas não consigo fazer diferente.
Nunca pensei que fosse fazer terapia. Acho muito estranho. Ficar aqui falando. Mas sei lá. E também nem sei o que dizer. Tudo parece um vazio. A verdade é que o que há por trás de tudo isso acho que é um grande nada, um grande e enorme buraco. Não sei quem eu sou, e pior, não existe quem eu sou.
E também, para ser sincero, estou profundamente cansado de pensar em mim. Não aguento mais carregar o peso gigantesco dessa coisa que chamam de o ‘meu eu’. Quero mais é sumir. Ponto de nada.
Da vitrine ao vazio, esse o percurso.”
A era do elétron
Essa série é uma recriação livre e artificialmente encadeada de falas que pousaram durante o trabalho que faço: o de escuta de discursos a partir de uma determinada posição. As falas vão, de alguma forma, desenhando a aura do tempo que se vive. E tempo e ser dialetizam, tanto o tempo que nos aproxima do fim, quanto o tempo em que se desenrolam a cultura e os laços sociais que nos fundam e por vezes mantém. A forma de se filiar coloca-se, assim, como uma chave de leitura do ser, do tempo, do discurso.
Isso implica a pergunta sobre o contemporâneo e a subjetividade aí em causa, passando pela modernidade que a privatiza cada vez mais e a atualidade que esgarça sua crise. Vão-se desenhando as variáveis múltiplas da função de filiação em jogo na relação entre o sujeito e seus objetos basais. A questão vai insistindo: e o sujeito aí, imerso e autor nesse caldo? Sua posição? Essas variantes irão ecoar no próprio trabalho de escuta e convidar a psicanálise a refletir e a clínica a operar – para aquém ou além das diferenças individuais – em diversos ritmo, estilo e técnica.
Ao longo de milênios de aculturação, como aponta Norbert Elias, o humano vem perfazendo um inexorável movimento de individualização em seu processo civilizatório. Ficamos cada vez mais indivíduos, como nossos quartos, banheiros, telefones, telas e gozos individuais. O clã parece se dissolver para dar lugar às milhares de partículas humanas que aprendem a se comunicar virtual e globalmente, cada uma buscando seu modo próprio de viver e estabelecer o bem, o belo e o verdadeiro aparentemente por si. Ao mesmo tempo que, paradoxo, a massificação grassa. Um bilhão de pensantes pode assistir simultaneamente ao mesmo filme ou jogo de futebol, à mesma sequência de cem minutos de luz, som e movimento, que carrega consigo uma forma de compreender o mundo, naturalizando-a.
Isto é, ao aumento da individualização parece se entremear a difusão da forma de philia: quanto mais individuais, mais numerosos e simultaneamente mais fluidos os elos. Ao hiperindivíduo fetichizado contemporâneo se conecta a multifiliação imagética e superficializada. Pois me conectar a tudo e todos não poderia deixar de cobrar seu preço: tudo passa a ser recoberto pelos véus infinitos da imagem, no amor à superfície pretensamente lisa desse tecido. A lógica cínica se instaura, numa tentativa de sustentação daquilo que se sabe de antemão esvaziado mas frente ao qual os imperativos de prazer, performance e quantidade buscarão fazer eco e inércia. Porta aberta para a lógica perversa que, se é que não vigorará como norma, ao menos ganha algum vigor.
O tecido filiativo parece ser múltiplo, embora cada vez mais fino e raso: 457 amigos, ao preço de não se tocar nem escutar. Uma dezena de crenças, religiões e opiniões, ao preço de não entrarem em conflito, algumas dezenas de comunidades às quais me filio ao descompromissado preço de um mouse virtual que, assim como clicou, desclica. Ou seja, a multifiliação não tem como não operar com microfilias. Estabelece-se uma correlação matemática – daí estar no âmbito de uma função. O princípio da descartabilidade move a roda da fortuna ao mesmo tempo que mói a subjetividade e a estabilidade dos pactos sociais. A família está em desordem, como nomeia Roudinesco, e não somente ela: todos os laços parecem estar na dessarumação. Ou seja, é interessante para mim, que produzo, que você consuma, que você consuma sempre e tanto, e em face de maior encanto, adquira o novo: você, por favor, deixe-se encantar, sempre e mais. A aliança passa a ser fluida, segue no vai-da-valsa da confluência de interesses e habilidades de negociação. Busco me filiar a tudo e a todos, ao mesmo tempo que talvez a muito pouco: estou no reino do etéreo.
A era é a do elétron, aquela porção da matéria quase sem lastro, sem peso, mas com carga. Era que tende ao puro movimento – impossível mensurar sua parada e seu ritmo simultaneamente, elemento fugidio na imensa arquitetura da matéria que, por isso mesmo, torna-se probabilístico – e que engendra a eletrônica, a genômica, a quântica, a biorgânica. Ela engendra a série de objetos e verdades por ora estabelecidas e eventualmente ultrapassáveis pelo cientificismo que pesquisa e comprova, oferecendo a sucessão de objetos cada vez mais descartáveis e programadamente obsoletos que a tecnociência produz, acabando por ferver nosso olhar com as “mais novas” imagens-fetiche com as quais a lógica midiática, organicamente publicitária, termina por nos seduzir. Abduzidos, exaustos, alegres. A era do elétron pulsa.
O sujeito, então, como anda? Andarilho. O pacto vale enquanto vale, nada mais, nada menos; ponto. A validade e a própria legitimidade são estabelecidas a partir de uma dinâmica de confluência de interesses vigentes. O que pode ser efêmero; o que, de fato e estaticamente parece tender à efemeridade. Da vigência eternalizada à confluência temporária. Mas então qual o lugar do paterno? Quem garantiria o pacto? Deus? Declínio? Crise.
Édipo retorna. A psicanálise, como qualquer sistema, também parece se fundamentar em seus mitos – Lacan nos propôs uma chave para esse labirinto, a partir de uma releitura da estruturação freudiana. Somos herdeiros e transmissores, qualquer que seja o jeito – filhos, primogênitos, rebeldes, arautos, líderes, contraventores, louvadores, dissidentes, fraternos… Enfim, édipo ronda; as categorias clássicas permeiam o pensamento analítico. Não seria interessante, hoje, então retomar suas bases, raízes, braços? Essa retomada parece ser um movimento que nos anima, convidando cada um que se filia a essa tradição – psicanalítica – a aí se implicar.
A transcendência, o absoluto e o relativo
O de que se trata é chamado de constituição subjetiva. Constituir-se, verbo usado para dar conta do processo de ir se fazendo um sujeito. É algo que deve beirar a arte, uma vez que conjuga forma e criação. E parece que um resto de enigma sempre acompanhará esse percurso pois, afinal, o que é forjar-se a si mesmo?
A teoria que direciona nosso olhar parte de uma premissa de base: o humano nasce imerso no líquido informe da indiferenciação com o redor e seu trabalho é o do paciente, e por vezes necessariamente conflitante, recorte de seus contornos, mesmo que difusos. O materno foi a nomeação que se deu para a filiação primeira, o lago fluído que recebe o montículo de carne em seu seio, cercando-lhe simultaneamente de acolhimento e significação. As metáforas que cercam a chamada mãe apontam para o ilimitado, absorvente, boca voraz de um crocodilo gigante. A função gestante talvez sempre tenha carregado a sombra da devoração, Cronos trucidando suas crias. Imagem do temor de que o fruto não complete o ciclo de vinda à vida e involua, num antecipado retorno ao buraco negro do qual se parte mas que tudo atrai.
Há que haver uma força que se contraponha a essa. Paterno seria o mecanismo de ruptura do magnetismo primeiro. Caso o ser vivo que pretenda a humanização inadvertidamente caia nesse buraco – seja porque o líquido materno era pregnante demais, o braço do outro paterno curto demais, ele próprio sem recursos demais, ou uma conjunção desses vários fios –, ele pode torcer o pé e nunca mais andar. Trôpega então a trilha andarilha que nos faria humanos. Autismo, psicose, patologia, algo vem se desenhar: precoce, narcísico, pré ou pós algo que deveria estar e não esteve.
O contra-movimento – fundante, necessário, nomeador – vai sendo percebido cada vez mais inequivocadamente: o corte faz recorte e função. O corte, sobretudo simbólico, dá lastro ao lugar do qual opera a referência, fálica, e a lei. Nesse mesmo movimento, a separação possibilita uma maior diferenciação das peças, de maneira tal que vai sendo possível montar o quebra-cabeça de sua própria história, filiando-se da forma que foi então possível – isto é, historicamente – a cada uma das peças, ou objetos, em jogo. A matriz da composição está armada, os elementos lógicos estão à disposição: função do vazio, função de recorte e função de filiação[1]. Abre-se a brecha no caldo obscuro da indiferenciação, forja-se ou simboliza-se a falta, que dará abrigo ao recorte permitindo a nova filiação.
A partir do lago aparentemente ilimitado, brota o contorno numa porção de terra determinada arquiteturando assim uma ilha que pode então sustentar pontes. Metáfora claudicante, no entanto, pois não somos nem ilha nem terra, seres móveis que herdamos a liberdade aterradora do movimento. Porém, metáfora que diz da nossa libertação da água mãe que tudo engole e submerge. A função de filiação só pode se estabelecer – calmamente, digamos – em conjunção com a função de recorte que lhe é companheira, para inclusive reatar os elos, agora mais definidos, com a água primordial. Há vasilhame, ou continente. Cortar para trançar.
E o corte que dá contorno dá também limite. Dá limite-alívio, pois eu sou isso e tenho esse desenho, vejo minha imagem refletida no espelho do seu olho e lhe sou grato por isso: constituo o eu que ancora minha imagem. Porém, dá ainda limite-lei. Limita algo em meu eu que sempre busca voltar a correr para o mar, aquele da água fluida que é a mais ágil das matérias para não se deixar fixar em nenhum limite formatador, pois que sou já pura maleabilidade. Como se o eu quisesse poder permanecer na imersão do indiferenciado, imagem do gozo infinito e indefinido, e o recorte lhe desse um tônus, o amadurecimento e esgotamento da liquidez.
Há o outro e essa existência, de per si, limita. Esse aspecto da função ganha o formato simbólico de lei. As palavras tentam traduzir a forma com que o limite incidiu sobre um agrupamento humano. Lei é lex em latim, é nomos em grego: vem do verbo que descreve o dividir, repartir com o outro e que, em última instância, gesta a idéia de justiça. Que talvez seja simplesmente o momento em que o ser se conforma e, se puder, se regozija com a presença (no entanto talvez sempre infernal) do outro.
Nosso trabalho, analítico, incide, pelos interstícios das palavras ditas, sobre cada um dos momentos lógicos dessa constituição, sobre essa ampla e complexa tessitura e seus buracos: desatando o que é possível da trama, não tão tramada assim, para fazê-la vir a existir em uma forma a mais interessante, confortável e desejante possível para um humano poder levar seu existir. Como essa reconfiguração do lugar imaginário do outro e, dessa maneira, do sujeito e seu lugar se dá ao longo de uma análise é a fatura nossa de cada dia. Alguns modos de operar se decantam e a forma de operar da função filiativa é fundamental para a escritura da nova posição subjetiva. Um novo convite à ficção pode ajudar a traçar o sentido.
“Canto IV
Chegam ao palácio de Menelau quando ocorre o festa de casamento de um dos filhos do rei. Durante o banquete, Menelau fala de Ulisses, ainda sem saber quem é Telêmaco, e este começa a chorar.
No dia seguinte, Telêmaco conta o que se passa em Ítaca e que está em busca de notícias do pai. Por sua vez, Menelau conta o que passou no Egito, sendo de destacar a história de Proteu, o qual se metamorfoseava. Proteu contou que Ulisses ainda estava vivo, mas estava preso numa ilha por Calipso, a ninfa, que o queria para marido.
Ao mesmo tempo, em Ítaca, os pretendentes descobrem o que fez Telêmaco e preparam um navio para lhe armar uma emboscada e matá-lo. Também Penélope toma conhecimento do fato, desfalecendo de preocupação, trancando-se no quarto para chorar e recusando-se a comer. Atena conforta-a através de um sonho, em que a irmã de Penélope lhe conta que Telêmaco está em segurança.
Aqui termina a chamada Telemaquia, ou seja, a parte da Odisséia centrada em Telêmaco, na sua ação e no seu amadurecimento psicológico. Começa-se agora a acompanhar as façanhas de Ulisses.”
“Querido Pai,
Você me perguntou recentemente por que eu afirmo ter medo de você. Como de costume, não soube responder, em parte justamente por causa do medo que tenho de você, em parte porque na motivação desse medo intervêm tantos pormenores, que mal poderia reuni-los numa fala. E se aqui tento responder por escrito, será sem dúvida de um modo muito incompleto, porque, também ao escrever, o medo e suas consequências me inibem diante de você e porque a magnitude do assunto ultrapassa de longe minha memória e meu entendimento.
Justo como pai você era forte demais para mim. Você só pode tratar um filho como você mesmo foi criado, com energia, ruído e cólera, e neste caso isso lhe parecia, além do mais muito adequado, porque queria fazer de mim um jovem forte e corajoso. Não quero dizer que isso não estava certo, mas quero caracterizar seus recursos educativos e os efeitos que eles tiveram sobre mim. Sem dúvida, a partir daquele momento eu me tornei obediente, mas fiquei internamente lesado. Esse sentimento de nulidade que me domina deriva da sua influência. Para mim, sempre foi incompreensível sua total falta de sensibilidade em relação à dor e à vergonha que podia me infligir com palavras e juízos; era como se você não tivesse a menor noção da sua força. Da sua poltrona você regia o mundo.
Naturalmente não quero dizer que me tornei o que sou apenas através da tua ascendência. Isso seria por demais exagerado (e eu até me inclino a esse exagero). É bem possível que eu, mesmo se tivesse crescido totalmente livre da tua influência, não pudesse me tornar um ser humano na medida em que o teu coração o desejava.
Meus escritos tratavam de você, neles eu expunha as queixas que não podia fazer no seu peito.”
“Isento de paixão, fosse por alguma coisa, pessoa, ou idéia, incapaz ou indesejoso de revelar-se em qualquer circunstância, ele conseguira manter-se à distância da vida, evitar a imersão na rapidez das coisas. Comia, ia para o trabalho, tinha amigos, jogava tênis, e apesar disso não estava ali. No sentido mais profundo e inabalável, era um homem invisível. Invisível aos outros, e muito provavelmente invisível a si mesmo.”
Entre a Odisséia e o Orkut quase três mil anos se passaram. Parece que, a despeito das inúmeras novas ferramentas forjadas desde então, o humano continua com o problema de ter de dar conta da relação consigo próprio, com o outro, com sua terra e com o cosmos. Parece também que esses vários planos – e alguns outros aí condensados – são na verdade volumes que se interpenetram forjando significações e filiações numa rede neural complexa.
A Odisséia se inicia com a busca de um filho por seu pai, esse herói do qual sempre ouvira falar e pouco ouvira a voz falar perto de si. Sai em sua busca e, assim como o pai, conta com a ajuda de todos os aliados que sustentavam o humano então, das ninfas aos reis, passando por heróis, deuses e naturezas. A razão ainda não havia cindido o mundo do maravilhoso e o da verdade da ciência.
Mas a modernidade se estabelecerá e a filiação do ser consigo e seu entorno será outra. Inicialmente confiante na racionalidade, aos poucos parece se conscientizar de seu excesso de luz. A era moderna atravessa o XIX lendo os subterrâneos da transcendência divina e paterna, revelando sua falta. Freud aí comparece, e convida a essa escavação. A carta de Kafka a seu pai se inicia com um apelo dirigido não ao herói ou à deusa, mas à fortaleza inalcançável, dura e plena de poder do homem-patriarca. Ele, no entanto, não pode mais amparar o filho. O humano demasiado humano de Nietzsche, infelizmente, pouco pode. E o super-homem ainda não nasceu plenamente. Onde se estava então? No limbo, ou na loucura. Ou talvez na espera, pois o além do homem não deixa de ser solicitado, espécie de reserva de transcendência na virada para o XX, auge da modernização ao mesmo tempo que crise dos esteios da modernidade.
Quase um século depois, o texto de Paul Auster sobre o pai, que acabara de morrer, traz um dos significantes mestres da nossa era: a invisibilidade. Aquela que luta com a ilusão da permanência na imagem e tudo faz para consistir a permanência de sua verdade tão frágil. O pai sem estofo ocupa um espaço de referência de certa forma vazio. Essa condição de semi-filiação seria o gestor das redes que moldam a forma e a imagem do eu contemporâneo? A grande filiação se torna invisível. Ou talvez inexistente?
Uma estrutura, uma seta, uma forma mais ampla daí se depreende? Possivelmente. Vetor com direção: o humano cada vez mais privatizado, subjetivado às suas próprias custas, sem deuses, sem ninfas, sem sonhos-mensagem, sem comunicação com o transcendente, sem destino, enfim. A ele próprio cabe traçá-lo, na mais árdua tarefa que talvez tenha cavado para si, e que vem perdendo o sentido de progresso, de utopia, de rumo. As balizas se tornam cada vez mais frágeis, ou delicadas.
Assim, o vetor termina por apontar seu sentido: do absoluto à relatividade. Talvez estejamos bordejando uma episteme que parte da necessidade de um mundo das formas perfeitas e imutáveis – platônico –, assume a perspectiva classificatória da causa formal aristotélica, que precisava da premissa do mundo estável, aquele em que não há transformação do genérico e que passa a ter que lidar com a evolução darwiniana, o inconsciente freudiano e a instabilidade visceral do átomo antes indivizível. A era do elétron é paralela à relatividade, aquela que abordou a priori a estrutura da matéria, e se entrelaçou, ao longo do XX, em todas as formas antes estáveis do viver. Estamos talvez no declínio do absoluto, do certo, do eixo claro e distinto. Luto da verdade? Sim. Saber fazer com o relativo? Parece que não. Lacan nomeia o espaço da meia-verdade, mas como operar a partir daí? Lugar não muito possível: atualmente se exerce ou o cinismo indiferente, pós-moderno e pré-depressivo ou uma tentativa de reabsolutização contínua. Procura-se refazer balizas absolutas, no trabalho esforçado de todos os fundamentalismos que almejam a transcendência – necessariamente divinizada –, seja a do deus reerguido e que se deve respeitar e unicizar sob pena de multa, bomba e inferno, seja a de modelos normatizados de beleza, sucesso ou qualquer outro ideal autoritário que nos ronde. Crise da filiação clássica? Talvez. Mas talvez possibilidade de recompreender a função de filiação de forma mais ampla. A nomeação é delicada, mas o certo é que se perdeu algo. O que talvez seja necessário, como os divãs nos revelam.
O olho clínico
A função de filiação se torna, portanto, cada vez mais etérea, difusa, ao mesmo tempo que aparentemente se desprega do transcendente apoiador de sentidos, consistindo um outro cada vez mais humanizado, ou seja, fragilizado. A linha do tempo parece nos propor esse desenho: o mito ancora a corrente e o destino inexorável, o lógos racionaliza nossa possibilidade de conhecer, a modernidade radicaliza esse movimento e o subjetiva, instalando o eu fundado na consciência racional que fará ciência e mercado, destacando-se do objeto assim positivado, conhecível e adquirível. As formas do falar e fazer estético imbricam-se aí: o artista assina a obra com seu nome próprio no Renascimento, o romance moderno coloca o eu em perspectiva.
O texto kafkiano do início do XX já instaura o pai onipresente mas ao mesmo tempo decaído e a virada do XXI o faz invisível, intrinsecamente alienado de si, como qualquer mortal. Declínio da imago paterna? Morte do pai? É o que se diz, é o que a psicanálise diz e tem a dizer, pois escuta essa fala na base de todas as falas. Mas ela diz, ainda: essa fala vem como queixa, lamento, apelo, nostalgia. Ou seja, a repetição insiste, a pulsão gira e gira, no eterno jogo do carretel que almejaria presentificar o outro do amparo. Que, sabemos, não há. Mas esse saber permanece não sabido, posto que rebrota na refilmagem da cena sempre repetida. Talvez um caminho que a clínica nos indique, ao menos, duplo: o da simbolização dessa cicatriz, suportanto seu quê de real não encadeável, e o da responsabilização radical do próprio sujeito por sua fala, inconsciente, ato e história. O paradoxo é manter esse elo com o ‘poder responder por’ juntamente com a ultrapassagem narcísica. Onde a costura infinita do eu cederia espaço à subjetivação. A filiação passa pelo si mesmo.
Alguns breves recortes clínicos dizem dessa seara.
A porta de entrada no processo não fica exatamente na entrada: às vezes pode estar mais adiante, depois da passagem por algum hall, jardim ou mesmo após se voltear a casa inteira. A entrada em análise é todo um capítulo, debatido, discordado, feito livro, inclusive. O caso é que não se dá sem uma nova forma de escutar. N. vinha seguindo sua história e cada vez mais dizia de sua origem, maculada. Filha de um adultério, seu nascimento era marcado pela interdição e vergonha. Isso teria relação, ainda, com o alcoolismo da mãe que fora ficando cada vez mais denso, a ponto de matá-la. N., assim, era duplamente marcada pela negatividade da conexão ao que veio antes de si. A virada lógica se dá quando pôde surgir a pergunta sobre a culpa: ‘por que me sinto culpada por tudo isso? Não faz sentido’. O que se colocava sob a instância da negação vai se afirmando como frase. E então uma proto-resposta, ou a descoberta: não sou culpada, mas tenho algo a ver com isso. “Algo a ver”, pois isso me marca. O que eu tenho a ver com isso?
Neste ponto, sim, uma nova filiação se instaura. O absoluto do elo, que alimentava a culpa imaginária, narcísica por princípio, pode começar a ceder lugar à interrogação que desloca o eu da potência alucinada ao mesmo tempo que aceita as marcas significantes que embasam seu lugar. Aceitação dos elementos, para que se possa construir a pergunta chave sobre o ser do sujeito que fala. Aí a transferência se faz, à linguagem – possibilitando um trabalho analítico propriamente – e ao lugar de analista com seu saber mirado no discurso que pode vir a se constituir.
chega com a pergunta, que persegue há anos: ‘sou hetero ou sou gay?’. Pergunta que, ela própria, se revela sintoma – na medida em que pensamento e sintoma podem se casar na lógica obsessiva – e, mais adiante, oferecerá o ponto sobre o qual se mantém o que claudica: quem é esse pai que não me olha? Que olhar é esse que busco a todo custo ter sobre mim ao mesmo tempo que tenho que afirmar como indiferente? Em meio a esses volteios, os contornos do seu modo de fazer apelo ao outro vai se delineando, na fronteira necessária entre filiação e alteridade, do absoluto à fissura. Não há como seguir numa análise sem traçar inúmeras vezes o esboço desse desenho.
Uma outra paragem inequívoca do caminho analítico atravessa o corpo. A forma de se filiar à própria carne feita corporeidade, matéria significada, irá ser colocada em cheque. O gozo do sexo se apresenta à fala e busca ser por ela bordeado. I., depois de longo percurso, por diversas intrigas e construções, enuncia, espécie de condensação: ‘meu corpo é morto’. E o paradoxo aparente vem ao centro da cena: justo esse meu corpo, mutilado, cortado, sangrante – à navalha, faca, estilete – é um amontoado de carne inerte, no limite da insensibilidade. Somente depois da morte nomeada é que as camadas simbólicas foram revelando seus fios, trazendo a filiação primeira a seu parto, prematuríssimo, e ao vislumbre, fantasístico – prematura? – sobre o abandono do outro para com o nada que era.
oscila. A transferência se dissolve? É disso que se trata? Sim, e não. O que se faz com o analista? Desfilia-se? Essa parece ser a questão. G. se pergunta como irá seguir. ‘O que se faz com’ revela a relação com o objeto com o qual há justamente um ato em jogo. A discussão passa pela metáfora de Wittgenstein: talvez depois de se ter usado a escada e, estando no lugar em que se veio a estar, seja o caso de se desfazer dela. Deixá-la pender.
O convite proposto pelo analítico passa, assim, pela reescritura possível de uma história ao mesmo tempo que pela reinvenção do fazer em relação ao resto que não cessa de não se escrever, presa do impossível. De qualquer maneira, aponta a filiação a um cerne de si, íntimo ou extimo, que contém o resto vivo de verdade, desejo e enigma, na sua radicalidade. Como escutar essa raiz? Essa a tarefa, e talvez não só da psicanálise mas de todas as práticas e discursos que se proponham a essa escuta.
O silêncio-mordaça ou a derrota da subjetividade parecem assustar e estar no horizonte de nossa prática. No entanto, algo do sujeito insiste e fala, às vezes berra. Talvez seja possível colher esse decantado. E direcioná-lo? Ao menos deixá-lo semear. Aí a psicanálise, no contemporâneo, parece ser convidada a não ter outra posição, real, senão a da trincheira. Faz resistência ao onipresente discurso de silenciamento do sujeito, desde aquele que aliena via medicação, e que se tornou naturalizadamente normatizante, até aquele que aliena via fetichização, crente nos ideais sempre alheios. Onde a sociedade descartável se casa com a sociedade depressiva e ambas – que são uma e mesma – em seus diferentes prismas, consomem. Da mercadoria prozac à mercadoria ‘o mais novo modelo’, do objeto em sua concretude ou em sua forma de bens da indústria da cultura (isto é, de entretenimento), o fetiche é o mesmo e o eu é o receptáculo. A pergunta seria como convidar a uma implicação onde os elos pudessem receber novas perspectivas de olhar e engendrassem uma outra posição, possível.
a morada, a crise
Um discurso que carregue alguma densidade e efetivamente opere no prisma do dizer – aquele que almejaria uma carga menos leve que a ventania do blablabla (que, no entanto, às vezes derruba e ergue bolsas, e justamente de valores) – esse discurso traz consequências. É um dizer que talvez não tenha como não se haver com a questão ética. Ética no sentido radical: um pensar sobre o ethos, a morada que construímos, o como estar, o em que direção permanecer e seguir. É prática de base da razão, o pensar com finalidade. É inclusive uma forma da liberdade poder se exercer. Ela tem o privilégio de desenhar um sentido, de construir a decisão.
A razão tem essa liberdade e esse dever, pois que não tem a prerrogativa de não ser consequente. No reino do humano, de fato, não há a inconsequência. Quer saibamos disso ou não. Sendo assim, talvez seja mais interessante que se saiba. Fazer do saber um não saber tem seu custo – não é justamente essa uma das faces do recalque? Desconectar a representação daquilo que a move, deixá-la pairando num domínio outro, inconsciente, seria uma das tentações mais primárias do psiquismo. Agora, e se ela trabalha? Se existe trabalho, se há pulsação – e há –, há retorno.
E, dependendo do gênero, magnitude e estilo do que retorna ou se reapresenta, assim como da conjuntura do entorno, há crise. Novas configurações vêm esbarrar nas vigentes, propondo o caos e o reajuste. Os elementos em dissintonia propõem a tarefa do separar, do discernir, do julgar – do grego Krei, Krinein, Krisis – ou do limpar, desembaraçar – do sânscrito Kri. De qualquer maneira, há que se separar o joio para ver qual trigo floresce e alimenta. Mesmo que alimente o fogo de novas fogueiras críticas, na dramática ou para alguns previsível dialética da história.
O caso é que, atualmente, estamos em crise. Esse o diagnóstico repetido, assentado em nossas mentes. E legítimo. Algo de transformador subverte nossas concepções. Os esteios antigos foram, num longo parto, de séculos, laicizados e humanizados: gerou-se o moderno. O moderno, assim que posto, vem sendo, senão deposto, criticado. Kant fez sua parte, o romantismo a dele, Freud radicaliza. A razão não mais é soberana, a consciência não é guia confiável; a luz, paradoxo, não só ilumina. Mas, se não temos mais deus nem razão, o que temos então? Qual o novo critério? Haveria algum possível outro parâmetro, além da fé na simulácrica pseudo-verdade da imagem? Ou justamente a nossa era é da perda do absoluto do Um, engendrando o relativismo geral (este sim, elevado, então, à categoria de novo absoluto)? Crise geral nas formas de filiação. Crise da modernidade, da razão, da lei, do patriarcalismo, do pai, da família, do sujeito, da subjetividade, da pólis, do político, da economia, do trabalho, da terra.
O pós-moderno, além ou aquém do moderno, posto que suas balizas não nos dão o esteio esperado, é montagem e efêmero. Era do elétron: movimento, aceleração, excesso. Será que o que resta não é a busca desesperada por uma formalização possível, porém não necessária? Esvaziada de conteúdo, ficamos vagando em torno de formas reconhecíveis? O terreno fica, assim, fertilizado para a propaganda ideológica primária da nossa era de consumo global, ancorada na ilusão da forma-marca ou forma-moda. A gramática é a da perversão; a retórica, via imagem; o imperativo, do gozo; o parâmetro, do individual. Mas se a lei não é para todos e o perverso reina como formato, então é a volta ao caos? Elétrons desgovernados na bomba que é atômica, ou suicida? Retorna-se ao início. Haveria transcendência, mesmo que mínima, para o curto-circuito surdo no qual parece que nos enfiamos?
Uma análise que chega a termo diz algo, dizer que, se assim é, faz ato. A análise psíquica, ou psico-análise, pode nos trazer alguma luz, aquela que, no um a um de cada caso, vai se constituindo ao longo do percurso de fala (e escuta) e funda um corpus, que pode vir a ser teoria, metapsicologia.
Uma premissa central que nos norteia é quase óbvia: a razão, fundada na perspectiva da objetividade, não é tudo, nem totalidade. O que não sabemos muito bem é como extrair as consequências, radicais, práticas, inclusive, dessa constatação, pois ainda nos baseamos – e isso muitas vezes mesmo em análise – em derivativos do mito de uma racionalidade técnica que é irmã do princípio de que os fins justificam os meios. Como seria uma forma de operar, e viver, na qual o inconsciente estaria, de fato, contemplado, implicado? Estamos longe desse tempo. A educação, a política, a família – enfim, as instituições, mesmo psicanalíticas, mesmo em crise, parecem se deixar reger pelos princípios narcísicos do eu submetido a modelos identificatórios necessariamente coletivizantes. Que buscarão, portanto, estabelecimento de novos absolutos e ideais a defender, assim como marcas identitárias a sustentar. Uma análise, a priori, levaria à quebra dessa lógica, à assunção do não absoluto, do não-todo.
Estamos, assim, no âmbito de um outro tipo de ajuntamento de partículas que não o clássico e operacionalizável mecanicamente: o sistema se revela complexo, aberto e pleno de caos. As aberturas demonstradas por Prigogine ou os novos termômetros da entropia ou da física podem nos dar lastro no âmbito de uma reflexão da estrutura psíquica, igualmente aberta. Como escapar à tentação obsessivamente de crença na descrição, previsão e controle onde toda e qualquer alteridade é reduzida a objeto? Medusa que, inclusive, embasa a ciência do conhecimento positivo – senão, como compreenderíamos o marketing que busca moldar nosso impulso mais íntimo ou a neurofarmacologia que permite ganhar dinheiro com a receita de moléculas que inibem recaptações de outras moléculas na maravilhosa, ingênua e perversa tentativa de dar conta da tristeza da alma? No entanto, o controle absoluto falha, a diversidade foge ao controle das nossas ferramentas de mensuração, e o sujeito emerge, mesmo que em frágeis fissuras de uma ordenação não tão bem estamentada.
Sim, o sistema é complexo, aberto e o outro existe. Não há como fingir que não. Tenha eu dividido o mundo em duas partes ou não. Seja ele aquele com quem me identifico ou que odeio, ou nenhum dos dois. Seja ele rico ou pobre, ou nenhum dos dois. Queira eu imitá-lo ou eliminá-lo, queira eu imitar o igual e destruir o diferente ou vice-versa, ou que tudo isso me seja indiferente. O outro existe e recebe um acúmulo de significações, o mesmo acumular que fundou a carga que o eu agora carrega. Enfim, o outro existe e, imediata e necessariamente, um laço é estabelecido com esse lugar: a filiação se instaura. Uma análise não leva à desfiliação nem à filiação, mas certamente a uma reorquestração das linhas filiativas de uma história, recompondo a ópera, recuperando tons, ultrapassando outros. Novas sintonias são reescritas. Nem é preciso uma análise para isso, é o trabalho de uma vida. O que a análise psíquica pode propiciar é essa tessitura – num estilo um pouco mais consciente, decidido e em nome e desejo próprios.
De qualquer maneira, o que se sabe é que só é possível seguir adiante servindo-se daquilo que nos antecedeu e constituiu, tecendo com o emaranhado de fios. Preservando um resto, ao mesmo tempo que não absolutizando, a filiação. Ou seja, nem pai, nem filho, nem irmão, ao mesmo tempo que tudo isso como decantado. A posição de sujeito é pura. O humano não é pleno nem primeiro, é pura continuidade. É parcialidade no fluxo contínuo do simbólico e suas redes.
Dois homens reformadores de paradigmas no século XIX podem nos dar disso testemunho. Erasmus Darwin escreveu, quando seu neto ainda era criança, sobre o conceito de evolução das espécies. E, note bem, em versos. Charles, para nós ‘Darwin’, viajou, pesquisou, mudou-lhe a pegada hereditária de transmissão dos caracteres adquiridos e criou uma nova concepção da variação do vivo no planeta. Estava feita sua tão longamente gestada ‘A origem das espécies’.
Freud. Depois da morte do pai mergulha num processo analítico radical e emerge daí provavelmente um outro homem (algo que não poderemos bem saber) e certamente uma nova teoria. A partir de uma psicologia científica ou neurológica esboçada no ‘Projeto’, com bases em quantidades e inervações, surge uma forma bastante original de dar conta dos processos mentais. E Freud tem consciência disso, como nos dá a ver no prefácio da obra feita a partir desse período, na qual os sonhos se prestam a uma nova forma de interpretação e a mente a uma nova aparelhagem:
“Este livro tem para mim pessoalmente outro significado subjetivo – um significado que somente aprendi após tê-lo concluído. Foi uma parcela de minha própria auto-análise, minha reação à morte de meu pai – isto é, ao evento mais importante, à perda mais pungente da vida de um homem”.
Ou seja, a mente não é o cérebro. O sistema não é fechado. A consciência não dá conta do real. Há o outro, inexorável, que me constitui e a quem me remeto. Também o eu não é um aparato lógico coerente e delimitado. Enfim, há o não absoluto, a não completude, um sistema vazado. Algo escapa, algo transcende. Não se trata de um misticismo metafísico. Talvez um misticismo laico. O além do absoluto e também da negatividade radical. Isso a psicanálise pode nos ensinar e mesmo fornecer o método para aí colocar o dedo. Sustentar o não-todo-saber, o vazio sem preenchimento pleno. O real, o espesso, a opacidade. Como? Pergunta que norteia o caminho, a ser enunciada e, quando possível, respondida, na parte que lhe couber. A molécula e o simbólico se entremeiam – como?, iremos descobrindo. O tempo futuro explicará algo do tempo presente – quando?, iremos sabendo.
A era que é a nossa demanda um tempo gerúndio que parece estar sendo muito difícil de bancar. Ressurgem os absolutos dos fundamentalismos de todos os gêneros, com a afirmação de certezas norteadoras. No entanto, sem a fissura do poder-ir-sabendo não há ética possível hoje. É nessa brecha que se escreve o acordo, o contrato. A lei é viva, processo feito e refeito, discutido, constituinte. Ao mesmo tempo que é parâmetro, e assim deve ser, válido e legítimo. O único razoável que conseguimos inventar ao longo do processo de civilização. A lei, a priori, é simbólica, e serve para todos.
Sabemos que o não se submeter a essa função lógica custa caro, o preço é o da perversão, ou seja, a lei do mais forte. O que tem mais – força, dinheiro, retórica, falo, de qualquer tipo – submete o outro ao e para seu gozo. A lei, gestada no coletivo, por ele assinada, exercida e fiscalizada, é o recurso instituído para barrar o gozo do Um. O lugar do Um acima (ao lado) da lei que pode ser tanto o outro como também o eu, pois restos de gozo pulsante todos carregamos. A questão é se esse resto tece, ou não, a possibilidade de fazer uso de seu sintoma, tornando-o partícula de outra ordem. Um uso nem muito neurótico nem perverso, e sim aquele que beira a poesia, o humor e talvez o amor, como queria Freud. Quando o um vive ao lado do outro, e esse parece ser o caso do ecossistema humano, há que se fazer auto-organização, auto-gestão do sistema, por mais instável que ele seja. Daí a disciplina denominada ética.
Do ponto de vista do ‘um’ sujeito, a ética habita justamente esse território, entre desejo e gozo, e se enuncia como a ética do bem dizer. Aquele dizer que se faz ato e implicação sobre o real. Nesse sentido, ética da filiação a esse cerne de verdade em si – estruturalmente constituinte. E que se saiba da ordem do parcial, aquele que é parte do conjunto vazado: há valor, há verdade, há filiação, embora sem ancoragem nem no fundamento absolutista nem na desimplicação relativista. Parte do não-todo: essa a de certa forma original matemática topológica da psicanálise.
Qual o princípio e qual o método de constiuição desse paradigma propriamente ético? A priori, o princípio norteador mais amplo que por enquanto se conhece é pela manutenção do vivo. O método, antigo, se faz pela via do acordo. O contrato mutuamente falado e simbolizado. Quais os acordos, ou seja, as leis, que embasariam um estar na morada do mundo, consigo e com o outro? A fala, a lei, o brotar do discurso que traz consigo aquilo que se revela, também inconsciente. Talvez o que temos para deixar existir esse fio tênue e inquebrável da filiação matriz. Fio que não tece se muito largo e duro, absolutizado, nem se muito diáfano e lacunar, eletrônico em excesso. A busca da equilibração dialética, ao menos essa miragem nos ancoraria.
Qual herança se carrega? O corpo, o simbólico; carne e letra que se conjugam na existência do um. Cada qual saberá do seu peso e leveza. E de como arranhá-la e eventualmente compor com a do outro [2].
Notas
[1] Em outra ocasião, abordei o que chamei de “função do vazio”, em que se diferenciava o vazio indecifrável, vazio-sem-cifra inominável e vazio-zero que vai sendo simbolizado no decorrer de uma história e de uma análise, chegando a funcionar como operador necessário do desejo. Fez-se uma aproximação com a invenção, de certa forma tardia, na matemática, do conceito e da escritura do zero.
[2] Escrevendo minha própria filiação: idéias presentes neste texto permearam diálogos com interlocutores com os quais tive o privilégio da troca: André Gatti, Eduardo Longo, Luíza Pinheiro, Mário Toledo, Sidnei Goldberg, Welson Barbatto.
Referências bibliográficas
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FREUD, S. A interpretação dos sonhos (1900). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro : Imago, 1976.
HOMEM, M. L. “A função do vazio”, 2005. Publicação eletrônica em http://www.estadosgerais.org/encontro/IV/PT/trabalhos/Maria_Lucia_Homem.php (01/09/07)
HOMERO. Odisséia. 7a ed. São Paulo: Cultrix, 1994.
KAFKA, F. Carta ao pai. São Paulo: Cia das Letras, 1997.
PRIGOGINE, I. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. São Paulo: Unesp, 1996.
ROUDINESCO, E. A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Edusp, 1995.