Era uma vez uma ilha: a dança

E de repente, de dentro da contenção dos sistemas e dispositivos, explodia a dança. Voraz, ágil, veloz. Era a áfrica em estado puro que emergia da pulsação cada vez mais forte dos tambores em que todos os corpos da ilha pareciam percutir. As extremidades de todos os seres vivos vibravam na pele de bicho dos instrumentos e a massa viva desenhava a base em que o berimbau ensaiava a melodia.

menos que isso:

uma cadência

molemente gingada,

sem salto alto.

Não. Eram puros saltos. Saltos altos. Transpassantes. Jogo frenético. O crescendo da luta na arena. Os machos se pegavam no precipício estreito do contato permitido: a capoeira em toda sua absurda potência. O fio apertado entre os corpos muito próximos, o limiar sutil entre jogo e luta, amor e violência.

Mariana ficou siderada. Eles em movimento ensurdecedor e seu corpo paralizado, ela surda, talvez muda. Só conectada por aquilo. O mundo perdeu o som. Ela, independente, nesse instante capturada por aqueles reis de 300 anos.

Siderada. Siderada completamente. Seu pulso quase parou. Deixou de respirar por uns segundos, enquanto ia sendo tragada pelo portal anti-alice. De repente ela soube que tudo o que chamava de sua vida era um desenho patético e esforçado como qualquer outro. Ela deixara de exisitir como uma identidade marcada e inscritível, era puro corpo pulsante nas trevas dos tempos. O mundo tremeu, fissurou. Ou a terra ou qualquer coisa que caiu do céu na festa que se repetia como puro ritual. Ancestral.

Talvez já tivesse passado para o lado de lá. A dança hipnotizava a ela e a todos os corpos extáticos. O momento em que o sublime encontra o êxtase é da ordem do milagre. E não entendemos. Há milênios perseguimos o entendimento. Mas não há como esquartejar o acontecimento. Fendas sinápticas carregadas de substâncias ou camadas astrais carregadas de auras ou massas simbólicas abarrotadas de significações: em algum lugar há de estar o grande mistério da conexão entre matéria e energia. Ninguém entende mas já se desenhou a fórmula. O inacreditável é que a mais pura physis em movimento carregue luz e energia no seu mais profundo âmago. Mas Mariana não pensava em nada disso assim racionalmente. Ela tinha sido nocauteada. Knock out. Fora do jogo, abduzida.

Ela vivia no coração do Sapiens -o saber que nasceu em algum corte histórico em que a consciência se fez necessária para se morrer menos. Se até hoje essa ideia lhe era enigmática, nesse dia tudo se desmontou e esse enquadre geral da vida também derretia, pois que ciência e modernidade deixaram de fazer sentido pleno. Ali ela era pura inconsciência deslizando seu olho-cérebro sobre e dentro daqueles corpos em movimento sideral. Ela era África era Homo era Sapiens era explosão e todo o tempo que existiu e existirá. Portal de pura pulsão de vida em movimento. Seu corpo caiu. Simultaneamente potência e nada como só os loucos se deixam ser: os xamãs das tribos que fazem a ponte sagrada com o aqui e o além. Ela podia morrer naquele minuto.

Ali no chão, derrubada, seu olho acabou por ser capturado por aquele corpo perfeito que estava agora no centro da roda. Ele jogava de forma flutuante e forte aquela luta que não era luta. Ela foi arrastada pela função matemática do círculo. Para além dos tambores, o barulho do mar. Em ondas. Aquela era uma noite de lua cheia. Os raios das ainda misteriosas -virgens para a física – densidades magnéticas estavam em seu auge. Em época de lua cheia, a ilha tinha duas marés por dia. Até o mar menstrua. Dominado pelo astro fêmea que lhe puxa as águas. Como pode? Aquele ser era a concentração máxima da potência humana em estado de consciência.

Aí ele disse:

Eu queria falar um minuto. Queria agradecer a presença de todos e colocar uma pergunta nesta noite de festa: o que vocês vão deixar na ilha?

O som do mundo voltou quando ele tomou a palavra e a derramou sobre todos. Ela escutou perfeitamente. O corpo fala, o corpo intima. Interroga. E aí, você que vem para cá, no nosso território que um dia foi sagrado, você que obedece ou aceita o convite ao qual somos instados continuamente a seguir, aí, e você? Qual é? Qual teu lugar nesse jogo?

E mais, qual seu ato a partir dessa interpelação?

O corpo dela ficou preso no tabuleiro. De pé, como a mulher do atirador de facas. Extática mais e mais.

A faca penetrou na sua garganta, lâmina de um capitão senhor dos mares. O gancho dele rasgava sua pele, e aquilo ela sabia que era sexo. A partir daí, ela não pôde mais despregar seu olho e seu corpo todo daquele outro corpo, que agora tinha ganho a densidade de uma voz. Ela teve seus joelhos dobrados pelo som dos sinos no coração da floresta que saía dos tambores.

Naquele momento ela deixou de ter um nome. Nem Maria nem Ana nem nenhuma das deusas. Só sabia que estava em outro plano, o que talvez signifique outra realidade. Afinal, o que é realidade psíquica?

Nem ela nem nenhum dos corpos que começavam a se balançar sem querer ao redor daquela roda saberiam dizer. Ilhados que se perderam da civilização. E não era o mal visceral que eclodia, aquela gosma secreta que nos prende. Era a pulsação da vida. Dança xamânica. A força dos corpos em escultura escorrendo pelo controle cirúrgico do erótico de cada músculo dominando cada passo da luta guerreira da regional ou da angola, ou da bahia, da áfrica, do universo. Oxalá.

antropofagia

fagocitante

tomos. morte. homo

fagos

eterno retorno

besta

e eterno como qualquer vida

O movimento dele era lento e calmo e alerta -como um lince. Guepardo. Tigre-rei. Desfilava naquela ilha, senhor soberano. Um corpo só músculo que sabia pisar milimetricamente em cada pedaço de pedra ou talvez grão de areia em pó.

Ele assusta muito.

No entanto, algo nela não tinha como não sustentar aquela força. Pulsação primária. Big bang. Ela ficava ali, dominada. No entanto forte e ereta. Ao mesmo tempo que aquática -ela que descobrira na ilha que sua origem era peixe e podia respirar em qualquer ambiente. Ereta, fluida e corrente.

Não pôde mais deixar de segui-lo. Só a ele agora. Até o final da roda, quando então foi devorar o jantar. Faminta. Ela comia e bebia sôfrega, com os dedos, os olhos e todas as mucosas. Uma fome do começo dos tempos, fome de fêmea, fome humana. Na mesa de frutos do mar -e da terra- eis que ele surge diante dela, pele com pele. Vênus.

Era uma vez uma ilha. Que existiu a partir da grande explosão e hoje é plena de luz. Está neste minuto queimando sua força na ampulheta que não para nunca de escoar, até o momento em que a combustão arderá toda e as partículas se distanciarão

distanciarão

distanciarão

devagar

até apagar todos os vestígios de sua existência e a vida desaparecer por completo num universo gelado

porque era preciso

Eis que ele surge como que da fronteira entre mar e terra diante dela.

Todos iam para a ilha em busca de música e paraíso. E isso era realizado, junto com a dança. Não parava nunca. Vinham todos, de todas as partes do mundo. Todos se condensavam na ilha, sorte de microcosmos perfeito de um futuro possível: ninguém matou ninguém nem subjugou ninguém, todos comeram peixes tirados do mar com a mão e fizeram música e amor até mais tarde. A ilha era ao mesmo tempo projeto de avenir e nostalgia do momento mítico de harmonia tranquila com a natureza -a pregnante fantasia sempre renascida em nosso romantismo incorrigível, o útero que não nos abandona jamais, nós autoritários e nós libertários. Compartilhamos a paixão cega a essa face de Eros e sua comunhão magnética natural, delírio supremo de conjunção tão entranhada que só pode ser a morte.

fagocitar

cítara

tara

morte

Essas as palavras que o coro repetia no momento do encontro.

Os músicos caminhavam na ilha com seus instrumentos nas costas. Apeiam de seus cavalos que correm na maré baixa ao lado da linha d’água, traduzidos pela luz da lua e a vibração de todos os timbres. Os animais se deixam cooptar por esse canto de sereia e, assim, sacam para fora seus instrumentos, feitos de pele e floresta. Criam juntos a harmonia do erotismo menos mortífero que existe: o da música, que sempre conjuga, mesmo em escalas dissonantes. Em toda brecha da ilha tinha um som brotando e um aglomerado de formigas dançando e bebendo ao redor. Dionisíaca, essência ancestral de todos nós.

Ele surgiu como que da fenda do mar e da terra diante dela.

Os céus lhe inspiraram e o deus Kairós se oferece a ela com seu único fio de cabelo, veloz, na improvável captura. Ela teve a visão: era a oportunidade, que suas mãos souberam agarrar.

Ela diz: e tu, o que deseja que seja deixado na tua ilha?

Ele foi rápido. Olhou direto no seu olho, como se soubesse desde o começo que seu corpo sempre estivera sob seu jugo:

“Respeito”.

O olhar escuro, duro, reto. O tribunal de uma inquisição de séculos se realizava entre os continentes, as raças, os gêneros, as classes, as forças. O sangue europeu de olho claro e carne fraca naquele momento não recuou. Ela sustentou o duelo. A força dele, a verdade cristal que ele emanava fazia o jogo ser jogável. Ele queria algo, do outro e daquela mulher. Ele soube dizer seu desejo. Ela soube sentir que ele sabia que ela podia escutá-lo. E ele soube que era dele que ela tirava a força para sustentar aquele olhar e aquela fala.

Segundos -longuíssimos- pareciam ter expulso todas as partículas da caixa de pandora de onde talvez nada devesse ter saído. Eles não ouviam nada, a não ser as ondas que, essas, não paravam nunca de jorrar. Eles se desarmaram um diante do outro. Eram a gênese de um encontro possível. Ele passou o braço na sua cintura, mordeu sua boca e a mastigou inteira. Não largou nunca mais.

Game over.

Volte ao início.

Vácuo.