Electra Analítica

Malditas sejas e os bons deuses não te valham.

Carta à mãe

Há muito, muito tempo -milênios- eu te odeio. Te odeio do mais profundo do meu ser. Esse fio de ódio é o que move minha alma, meu corpo, minhas palavras. Milhares de vezes olho minhas mãos e sonho com o dia em que elas terão o gozo final de te destituir.

Em vez de mãe, tenho terrível inimiga. Viver é queixar-me do meu destino e maldizer-te a ti. Tua pessoa é causa inelutável da miséria de vida que me é dada carregar. Embora sem ninguém, abandonada, sentindo a vida escoar entre os dedos, algo em mim retesa e me dá alento. Vivo para a vingança. Já meio morta, no entanto renasço de minha desdita na esperança de chegar o dia de te ver morta. “Por que te enamoraste da desgraça?”, perguntam-me todos os dias. Não consigo abandonar o fascínio por essa ferida que pulsa, pulsa sem fim. Já falei, é o que me faz viva. O que me faz ser quem sou.

Qual teu crime? Esse: você matou meu pai.

Qual teu crime? Você matou meu pai. Mas, antes: você não me desejou acima de tudo. Você me quis como filha? Não consigo estar certa disso. Oscilo continuamente nos pêndulos dessa dúvida, que se transforma em queixa, demanda, dívida. Eu sou sua filha a mais desejada? Não sei dizer, nunca soube dizer isso. Pois acho que você já não me quis tanto quanto quis o primeiro dos filhos; ou quanto quereria um filho homem, ou quanto quereria um filho de outro homem, ou quanto quereria não ter filho algum. Seu desejo o mais profundo é um enigma para mim. Do que será feito o Desejo da mãe? O desejo desse Outro para sempre enigmático que é o primeiro grande Outro a nos acolher? Quer acolha, quer não acolha, ele será sempre enigma. E eis que, diante desse não saber, concluo: você não me queria; aliás, você só queria meu desaparecimento. Meu extermínio. Como posso não desejar teu fim também? Como posso não estar presa numa teia maligna de projeções e transmutações de todos os lugares e impulsos os mais destrutivos?

Qual teu crime? Esse. E antes: você deixou de amar meu pai. Você abandonou-o, humilhou-o, divorciou-se dele. E tomou outro homem como amante. Outro homem ou uma mulher, ou outro filho ou mesmo uma carreira e uma ganância, que fazem teus olhos brilharem bem mais do que meu ser e minha presença, bem mais que o ser e a presença de meu pai. E te odeio profundamente por isso.

Qual teu crime, então? Esses. E ainda: você deixou de amar meu pai, ou talvez nunca o tenha amado. Você não pode conceder a ele o lugar fálico que o pai deveria ocupar a partir do olhar materno. Você não o colocou nessa posição -condição essencial para que eu me constituisse como filha e mulher. Te odeio por isso. Como você não sabia que o desejo de um humano que nasce é desejo do desejo do outro? Você me largou num mar instável de identificações soltas e tênues. Você não percebeu que isso seria fundamento para mim? Base. Chão. Falta terra e me afogo no ressentimento.

E meus irmãos, como se colocam nessa rede? Não se colocam como pares que me ou nos barrem a cegueira. Uma é meu avesso, outro é meu objeto. Se sou força, coragem, potência, decisão, desvario, Crisótemis é sensatez, temperança, racionalidade e covardia. Essa uma divisão legítima ou didática. A rivalidade ancestral entre os irmãos e as irmãs está aqui também? Tu és a melhor filha, diz o coro. Não sei, sei o que quero. Orestes é instrumento do meu desejo e, dependendo do autor da narrativa, é mais ou menos ativo, mais ou menos crédulo. Sim, de fato os vetores são mais complexos que isso mas por ora sou somente contraponto.

Sou o prumo. Há mulheres de espírito viril e és uma delas. Ouço isso do coro e de todas as vozes que me formaram. E acatei esse polo identificatório. Tomo para mim essa crença na virilidade e na atividade que estariam aí imbricadas. Chamam isso de Complexo de Masculinidade de Electra. Concedo. Que posso fazer se aí me constituí como ser, naquilo que funda o mais complexo da identidade feminina, quase sempre a oscilar entre a afirmação da virilidade fetichizada e a identificação visceral com o materno? De certa forma, por vezes me ocorre que a força tão grande que faço para negar o vínculo com você só mostra o quão submetida -ainda- estou a ele. Que posso fazer se sou Electra e ao mesmo tempo todas as mulheres do mundo? Mas não, não quero pensar isso agora.

Você não soube compreender meu pai. E eu não soube e não quero te compreender. Por um momento parece que estamos no pacto democrático fundamental: nós ambas nos concedemos o direito da fala e nós duas nos escutamos. Mas não. Algo se quebra aí e não posso te ouvir. Não posso.

Sou o prumo. Minha resolução é inabalável. Meu desejo é decidido. É de novo o fino fio de aço que sustenta a minha existência. Minha vida tem um sentido e um norte: a vingança é bênção. Você diz que não te escuto ou não te permito a palavra. Tuas palavras são vãs e você nem é digna do dizer. Você é força a ser eliminada. Ao longo dos séculos me desenham de formas diferentes: com ou sem marido, com ou sem proteção, com ou sem amigos. Mas o que importa é que estou só e sem ligações significativas que dêem sentido a uma história própria, singular. Ela está ligada a ti e a meu pai. Eu sou filha de meu pai, senhor e soberano. Eu sou Electra, aquela que está do mesmo lado de Agamênon e do Estado grego. A que obedece a lei, essa lei. Filha da pólis.

Filha? Essa então a minha posição inexorável? Todos esses pensamentos, que levam a perguntas e novos pensamentos, me fazem perceber que sofro com isso. Sofro com esse lugar e com esse ódio infinito. Vale a pena? Não sei. Aliás, nunca me perguntei isso. Só segui. Segui minha vida cumprindo meu destino.

Vale a pena? Um outro abismo se abre.
E me pergunto: poderia eu, filha da mais intrincada filiação -Tântalo, Pelops, Atreu- tecer um outro destino? Ah todos sabem que a tragédia grega é marcada pela mais fiel concepção de destino inescapável.

Mas, será que poderia eventualmente questionar? Por que afinal não me seria dado tão básico direito? Em minha defesa: sei que agora sou um sujeito que fez ou ainda tenta a duras penas efetivar a passagem moderna. A estreita e por vezes sufocante travessia em que se desenha um outro destino. Questiono o destino, questiono essa concepção de coisa pública. Haveria em mim uma idealização do Estado que me deixava cega e surda? Pois esse era o Estado em estado puro que não deixava ouvir os seres reais e vivos.

Posso escutar minha mãe? Minha terra, minha origem, minha filiação?
Posso escutar esse outro ao mesmo tempo tão íntimo e tão estrangeiro em sua alteridade radical?

Começo a chorar lágrimas ainda mais amargas que as da impotência da vingança se me deito sobre essa ideia. Meus joelhos se dobram e caio ao chão se vislumbro, nem que seja por um segundo, tua humanidade. Teu sofrimento.

O que me diz? Que me pai muito amado te tirou de outro homem, teu primeiro marido, e matou esse marido e o filho que vocês tinham. Que meu pai te quis e matou para ter o que queria. Que o desejo de meu pai é soberano, digno do rei e pater que ele sempre foi. É isso o que me diz e que me contam? Que ele matou Tântalo e teu filho e te teve à força? Como você, mulher, poderia então amá-lo e desejá-lo?

Você me diz, ainda, que ele andava no bosque e se vangloriava como supremo caçador: apreendeu (mais uma vez) a caça proibida. A deusa Ártemis castigou-o, pois os deuses sempre castigam a vaidade humana. Ele perdeu os ventos e ofereceu a filha de vocês na barganha. O canônico sacrifício de minha irmã Ifigênia. Por que uma mãe se deixaria seduzir pela afirmação de potência desse marido e não por sua própria filha? Meus pensamentos estão confusos. Será que começo a vislumbrar que você foi sobretudo mãe e não somente a histérica que louva o falo?

Como se não bastasse, você ainda diz mais sobre Agamênon. Ele te deixou só com os outros filhos que te restaram e ficou dez anos fazendo guerra. Nem sei o que você pensava da guerra, ou o que as mulheres pensam e tecem hoje, e sobre quais outros homens e mulheres elas se apoiam. Sei que meu pai voltou com uma jovem e bela princesa como amante, Cassandra, seu prêmio de guerra e valor.

Aí talvez tenha sido o limite: é isso, minha mãe? Ele desde sempre e para sempre seria senhor dos corpos, dos seres, dos territórios? Por que, afinal? Na verdade, vejo que estou tão desamparada quanto você.

Você colocou tudo isso em xeque e acabou por matá-lo. Será que tenho coragem de colocar a pergunta: por que não? Da luz que chega enfim ao meu destino negro. Sim, no entanto, para além do destino e da vingança que há tanto tempo me constituem, não poderia ser outra a luz que me funda?

Aponta-me como desleal, como atrevida, até despudorada, ou mais, pois se sou bem dotada dessas “qualidades” recebi-as de ti; sou digna de teu sangue!
O desejo de me vingar de você e de todo o mal que depositei em você era meu traço mais nobre. E mais fundo. A tatuagem que me marca e me faz ser eu. Percebo então que, ao assim fazer, você está em mim. Eu te carrego inteira dentro de mim, eu não consigo te largar, te esquecer, te superar. De mãe para filha. Essa a sina da representação inconsciente? Começo a perceber que algo se trama aí. Os sólidos fios da filiação não se deixam quebrar por gerações. Só o fio da palavra muitas vezes dita, e redita, eventualmente feita simbólica, pode -quem sabe- ousar cortar como diamante algo dessa longa linhagem repetitiva.

E assim caminhamos, mãe e filha, presas em torno ao mais viscoso vínculo simbiótico de origem e ao mais cristalino ódio que é medo e desejo de separação. Presas, afinal, às armadilhas do desenvolvimento feminino. Giro em torno de ti como a filha mais fiel e amorosa, profundamente identificada a essa mãe que drena de mim tanto a paixão como a potência da destruição. Oh deuses todos de todos os oráculos: eu te amo então? Você é meu esteio mais profundo? É isso o que inconscientemente me move? Como pude ficar tantos séculos cega para essa verdade? Te amo e hoje te escuto. Hoje a luz se fez e posso olhar através dos teus olhos. Minha chama queima as trevas do mundo. Eis que sou outra.

Nota ao público

Electra XXI: um outro projeto de subjetivação

Há cem anos, Kafka foi para um pequeno vilarejo a beira do rio e escreveu em alguns dias uma longa carta a seu pai, em que buscava recolocar em perspectiva a relação de um filho que se sentia apequenado diante do assertivo, seguro e ameaçador patriarca da família. Estavam, de certa forma, colocados os pilares para o que seria um dos grandes projetos do século XX: reaprender a colocar a subjetividade moderna em ação e em questão. Já Hamlet nos ensina que há na “invenção do humano” um traço radical de questionamento da tradição que não simplesmente segue o fluxo esperado dos deuses e da sociedade -e que efetiva a vingança do pai. Não, Hamlet titubeia. Duvida. Ousa questionar: ser ou não ser? Kafka, da mesma forma, porém em outra chave, também coloca o pai em xeque.

Já Electra é Electra há muito tempo. Sendo cifrada como texto escrito há cerca de 2.500 anos, podemos pensar que esse arquétipo -no sentido de uma condensação ancestral de sentido- carrega outros tantos milhares de anos. Se em Kafka, temos a posição masculina diante do pai, e seu afeto primordial de Angst, medo e angústia, em Electra, a via real que afeta é o ódio por aquele tão íntimo ao mesmo tempo que tão outro, o laço com o materno, o laço originário por excelência.

Esta Electra que assistimos aqui, escrita por Hofmannsthal e musicada por Strauss, nos vem das profundezas de Sófocles e sua embocadura clássica. Eurípedes, Sartre, Giraudoux, Gerald Thomas, o cinema… Esse arquétipo vem sendo narrado, reafirmado e desconstruído há muito tempo, por clássicos e modernos, diante do fascínio de seu enigma. Freud centrou a travessia do enigma da diferença dos sexos no que chamou Complexo de Édipo. Jung buscou dar uma conotação paralela, e acabou por cunhar um Complexo de Electra. De qualquer maneira, o humano tem que se haver com o impasse da falta e da incompletude -para a qual, feliz ou infelizmente, não há pênis, falo ou pai que venha a suprir o que quer que seja. Esse o grande osso da Modernidade. Nosso, de mulheres, homens e o que mais se queira ser.

Tão próxima de Antígona e seu desejo inquebrantável, Electra é, no entanto, tão diversa. Aquela que pode ter uma outra destinação. Talvez possamos nos autorizar a desenhar uma outra configuração para as origens do feminino e suas relações, tanto a relação fundante mãe-filha, como o lugar de enunciação de uma voz de sujeito em relação ao pai e à polis. Pois não se trata de construir um outro lugar para a mulher e para todos os humanos? Para o sujeito político? Como não retomar outras possibilidades de elaboração de um lugar de não rivalidade e ódio radicais em relação à origem? Por que Electra não poderia, hoje, ao menos escutar a alteridade negada que representa Clitemnestra, ao mesmo tempo que deixar cair a alteridade idealizada que foi projetada na figura do pai ausente e da lei absoluta representada por Agamênon, pai, rei e senhor absoluto?

Ainda está no céu o grande Zeus
que tudo pode e tudo vê.
A nós, modernos, nem isso é dado.
Estamos condenados a seguir a vida, entre Electra e seu oposto, construindo algo de um sentido possível.
Sim, ousemos: embora os ecos que iremos escutar neste espetáculo venham de Sófocles e de mais além, talvez possamos dar voz aos jogos de luz e sombra de nossa complexa heroína.