Édipo: a encruzilhada fatal
Resenha para o livro Édipo, Tirano de Sófocles (Editora Todavia, 2018)
Cada pessoa da plateia foi um Édipo um dia
Freud, carta 71
Muitos séculos depois da primeira encenação de Édipo, temos a seguinte situação: um jovem médico que havia começado sua vida engajado na ciência, buscando decifrar a bioquímica neuronal, agora recebia pacientes em Viena, e ouvia repetidamente algo que acabou por lhe chamar a atenção. Como foi essa história?
Há anos Freud vinha escutando histórias, traumas, sonhos, desejos ocultos, fantasias. Como se sabe, ele ousou acatar a sugestão de uma de suas primeiras pacientes que lhe disse, basicamente, para ficar quieto e deixá-la falar. Ou seja, deixar que o saber viesse do próprio ‘paciente’, que se tornava então agente. E assim foi-se construindo uma nova forma de acessar a psique e um sistema de pensamento para dar conta do que advinha daí: um novo campo conceitual, que visava decifrar os processos e conteúdos não-conscientes e as forças que estavam em jogo em nossa estrutura subjetiva.
A psicanálise é, assim, uma espécie de microscópio da psique, talvez o mais interessante que a metodologia moderna encontrou para vasculhar os interiores da alma – já que esta ou, digamos, a mente dialetiza com um universo simbólico complexo a tal ponto que talvez seja ainda muito intricado para ser destrinchado plenamente pelas nossas materiais e substanciais neurociências (embora talvez este sempre tenha sido um sonho de Freud). Essa nova arte da palavra funciona como um funil por onde escoam os dizeres, proibidos sobretudo, recalcados, de uma época. Um campo de segredo.
E o que essas lentes mostravam? Um dia Freud se deu conta de que, por trás de todo um universo de relatos de vida singulares, ouvia quase sempre a mesma história de seus pacientes: algo que esbarrava na imagem, na fantasia de matar o pai e dormir com a mãe. Ou matar a mãe e dormir com o pai. Espécie de núcleo que se repetia invariavelmente em cada universo psíquico, um “romance familiar”. No meio do trabalho de elaboração teórica de todo esse material clínico, a morte de seu próprio pai precipita Freud em um processo de luto e de uma espécie de análise que o leva a buscar interpretar seus próprios sonhos e a decifrar a verdade de seus próprios desejos ocultos. E nesse momento o que lhe vem à mente? O que viria a se tornar um dos grandes insights e certamente um dos mais famosos conceitos da psicologia: o complexo de Édipo. Como ele diz na famosa carta 71 a seu colega Fliess: “também em mim comprovei o amor pela mãe e os ciúmes contra o pai — e hoje os vejo como um fenômeno geral da primeira infância”.
Nesses meses de angústia e criação, no final de 1897, Freud parte da clínica, passa pela sua própria experiência e traz o aporte da cultura a fim de nomear um fenômeno psíquico. Todos nós fomos um dia um pequeno Édipo e “recuamos, horrorizados, diante da realização dessa fantasia”. Fantasia que nos daria um lugar que faria sentido no caótico mundo das representações e dos desejos: ocupar o lugar de um (o pai) e possuir o outro (a mãe), repetindo o modelo da geração anterior. Ou seja, a linha conservadora da civilização nos daria um modelo a ser seguido, em que se delinearia a dupla hélice da corrente identificatória, do “ser” (identificar-se com o genitor de mesmo sexo, o pai) e uma corrente desejante, do “ter” (desejar o genitor de sexo oposto, a mãe). Eis a lógica do desejo inconsciente, que insistiria sobre nós.
É pela via dessa matriz que Freud interpreta Dostoiévski, Goethe, Jensen, Shakespeare… É por causa desse complexo inconsciente que Hamlet “hesita tanto em cumprir a vingança que seu pai lhe solicita: na verdade, o que o tio fez — matar o pai e dormir com a mãe — é exatamente aquilo que ele tinha vontade de fazer, mas não podia assumir”. Enfim, foi assim que Freud descobriu (ou inventou; há debates) na virada para o século xx, o Complexo de Édipo. A história do soberano que até hoje nos causa um “feitiço apaixonante” revive no inconsciente de cada um da plateia. Afinal, o “mito grego retoma uma compulsão do destino que todos respeitamos porque percebemos sua existência em nós mesmos”.
Neste momento, nos deparamos com um uma pergunta que insiste, como se estivéssemos diante da esfinge: estamos fadados a esse quadrante? Se o complexo edípico esbarra em uma ‘compulsão do destino’, estaríamos então sob uma matriz que pensaria o humano de alguma forma sempre dilacerado entre a liberdade de escolha e os deuses, ou entre Logos e Daimon? O detalhe é que o cogito cartesiano no início do século xvii e, sobretudo, a modernidade esclarecida do 18 não pretendia ter estabelecido de uma vez por todas um ser pensante, capaz de utilizar o método certeiro para distinguir as ideias claras e verdadeiras? A luz da razão não nos move?
Parece que Freud é, ao mesmo tempo — e aí sua força e sua permanência — um fruto da modernidade, pois busca amplificar cada vez mais a poderosa luz da racionalidade, que seria capaz de não recuar diante dos recantos ocultos de nossa alma, ousando abrir a caixa de Pandora do inconsciente e manejar seus demônios fantásticos e suas estruturas cifradas, e quem coloca em xeque um sujeito kantiano calcado nas ideias de autonomia e livre-arbítrio. Razão? Consciência? Liberdade? Valores tão caros ao projeto humanista… No entanto, a própria Modernidade já vem construindo sua vasta crítica, com o próprio Kant e o romantismo, no final do século xviii, e ao longo de todo o xix, sobretudo com Hegel, Marx e Nietzsche. O espírito, a consciência, a moral esbarram na história, na dialética, na alienação, na metafísica e no desejo de ilusão. O terreno está pronto para a subversão freudiana, que irá postular um sujeito, sim, mas sujeito do inconsciente, cindido, cego em algum ponto — Édipo radical –, atingido pela opacidade que lhe será agora companheira (desejada ou não, denegada ou não). E como anda sobre a terra esse ser trágico? Apoiado em seu cajado, movido por forças que lhe ultrapassam, as quais ele busca por vezes dominar, sejam elas Eros, sejam Tânatos, eróticas ou mortíferas, que, aliás, nos atravessam quase sempre cruzadas, habitando uma subjetividade sempre heterodoxa.
À diferença dos gregos — e talvez nem tanta quanto imaginaríamos ou gostaríamos — nós modernos não necessariamente colocamos essas forças em um espaço transcendental numa acepção que beiraria o místico (somos conduzidos por forças divinas), mas as trazemos para perto de nós, para dentro de nós (somos movidos por nossos próprios desejos, mesmo que inconscientes). Forças que teriam a ver com nosso ser, nosso corpo, nossos impulsos e os significados que buscamos ordenar para dar conta de criar um sentido para esse ser que vem ao mundo em convulsão. Sabemos há algum tempo que criamos (há milênios) teorias para dar conta do que nos acontece, e por isso somos seres condenados ao sentido. O curioso é que Freud percebeu, ouvindo seus pacientes adultos, que invariavelmente se chegava a um imaginário de sedução na infância. Depois de longos volteios, Freud se dá conta de que o mecanismo psíquico era de fato outro, e cunha um dos mais interessantes conceitos da psicanálise, em consonância direta com o complexo edípico: a ideia de fantasia. Um dos princípios fundamentais do funcionamento mental, que ele chamou de Princípio do Prazer, apoia-se nessa ideia; e a vida humana pode ser vista como uma mal orquestrada dialética entre o funcionamento fantasmático desse princípio que busca se defender dos mecanismos de pensamento que numa hercúlea tarefa tentam nos manter no Princípio da Realidade. Se levarmos esse movimento a sua radicalidade, teremos um patético quadro da vivência do nobre sapiente: sempre buscando dissuadir a si mesmo de se deparar com a aridez do Real. Não podemos deixar de lembrar de Édipo, o Tirano de incansável desejo de verdade.
E o que essas fantasias fundamentais tecem? Tramas com as coisas à mão, os objetos que formam o campo psíquico mais ao redor de um sujeito sem centro. É assim que nosso outro herói trágico — cada um de nós — se dá conta de que “a fantasia sexual apropria-se quase sempre do tema dos pais”. A sensibilidade da escuta freudiana captou esse movimento, que todos fazemos, de uma forma ou outra. Mais tarde, ao longo de sua obra, Freud se deu conta de que a via sacra edípica não é só “matar o pai e dormir com a mãe”. As coisas são ainda mais complicadas. Haveria um momento anterior e não menos marcante de ‘investimento libidinal’: a primeira etapa, para cada humano, foi o vínculo com a mãe, primeiro grande objeto de amor, primeiro Outro. A partir da arquitetura específica do núcleo familiar e dos enredos vividos, teríamos algumas saídas, diferentes formas de dissolução do complexo de Édipo. Mas sempre tendo uma imensa tarefa pela frente, a de elaborar o luto dessa primeira conexão e reorientar nossas forças para a construção de “objetos” futuros: objeto do ponto de vista psíquico, sobre o qual o sujeito deposita suas forças e suas fantasias. A menina teria que fazer uma volta a mais do que os meninos, pois que deveria deslocar a libido do primeiro e pregnante objeto, materno, e depositá-la sobre o pai/homem. Os meninos também fariam o luto da mãe, mas escolheriam uma outra mulher para colocar em seu lugar. Talvez por isso a cultura faça tantas piadas com a figura da “sogra”, lugar conflitante com o da outra mulher que o filho escolheu (e vice-versa), e talvez também por isso muitos homens fiquem sempre divididos entre duas ou mais mulheres, como se fosse quase impossível deslocar a figura da mãe de um lugar simbólico privilegiado. E, quem sabe, aqui a origem do nó mãe/mulher e mulher/mulher que gera tanto conflito na cultura e entre as mulheres. Além disso, temos toda a gama de recuos ou retornos, em que o amor da mãe resta imbatível, diva eterna, imagem à qual emprestarei meu ser e/ou meu corpo para construir uma estrela, numa lógica homo, trans ou transcendente. Poderíamos, a partir daqui, desfiar o fio de Ariadne e contar inúmeras histórias, todas aquelas que a clínica e nosso próprio inconsciente nos revela.
Essas tramas esculpem, assim, o núcleo social que opera as formas de subjetivação em jogo nesse momento histórico (como diria Foucault) e, sabemos, estamos no âmbito da invenção da família nuclear moderna, onde as imagos dos pais são cartas marcadas do baralho. Foi isso que a clínica revelou a Freud e seu grupo, e o que, de certa forma, continuamos a receber com nossos instrumentos de observação e mensuração das letras significantes a partir da experiência clínica. “Pais” podendo ser o clássico casal heterossexual (em extinção?) ou quaisquer outras formas de amor que valem a pena ou de desamor que gestam tantas crianças mundo afora. Pais, sobretudo hoje, podendo ser uma dupla ou qualquer tipo de unidade mono, bi, tri, polivalente. Como se sabe, vivemos há algum tempo -poucos séculos e, de forma aguda, poucas décadas- uma revolução sexual, aliás em grande medida também ligada à gramática transformadora dos ensaios freudianos sobre a sexualidade.
Se houver de fato alguma força na verdade.
Tirésias, Édipo Tirano
O complexo de Édipo está, assim, no cerne de uma virada que, além de clínicaé epistemológica e acaba por colocar em xeque ao menos três macrovertentes em jogo na modernidade ocidental: a da concepção de sujeito racional, numa subversão da ontologia delineada na linha que vem desde os gregos, passando pelo cristianismo e afirmada no Iluminismo; a do esfacelamento dos limites da sexualidade patriarcal e hierárquica, binária e heteronormativa; e a do deslocamento, entre ires e vires, do lugar do feminino. Freud dá voz aos histéricos, neuróticos, loucos, enfim, a nós, normais, para além do bem e do mal, do normal e do patológico. O infantil e o adulto se misturam no inconsciente. A sexualidade não é mais prisioneira de um recorte adulto, genital, heterossexual e reprodutivo. Não: a sexualidade é impulso de um corpo marcado por uma complexa escrita de prazer, desde o início da vida até seu final, ela é a um só tempo infantil, adulta, velha. A sexualidade é polimorfa, cheia de desenhos, orifícios, zonas, lanças e sons: o corpo é, mais que biológico, erógeno e erótico, potencialmente todo ele. Muito mais que hetero ou homo, ou com um objeto delimitado a priori, a sexualidade está no limite do pansexual e da construção em aberto. E, finalmente (o que hoje somente alguns insistem em contradizer), ela está muito aquém ou além de funções reprodutivas. Afinal, sejamos honestos: comparada com a frequência da prática sexual, real e/ou virtual, a vida que consegue se reproduzir a termo é da ordem do raro, muito raro. E inclusive seria muito melhor para a espécie -heroína sobrevivente- se cada novo ser a ser gestado pudesse vir acompanhado pelo desejo absolutamente decidido e maravilhado de maternidade e/ou paternidade de almas caridosas e corpos cansados mas felizes a receber uma e lhe humanizar.
Enfim, mais do que uma montagem a formar corpos obedientes e que pressuporia o desenvolvimento de uma eventual identidade sexual fixa, masculina ou feminina, atravessada pelo imaginário do falo ou da castração, o complexo edípico — cujas formulação e ouriversaria fina se fazem ao longo de toda a obra de Freud — é um campo de forças. É um emaranhado complexo de posições e funções subjetivas (dentro de nós e fora de nós, intra e intersubjetivas, em níveis conscientes e inconscientes) em que ao menos três processos fundamentais se constroem, tal como Édipo encontrou seu destino em uma encruzilhada de três vias.
O primeiro longo fio desse labirinto vai revelar a cada um de nós, ser em constituição, que não somos prolongamento do outro. Nem prolongamento, nem complemento, nem falo, nem coisa única, nem pedaço, nem indistinção, nem confusão, nem objeto nem nada dessa ordem. Quer queiramos, quer não, há o Outro. Mas também, e sobretudo, o fato de o Eu não existir por si mesmo, nem ser centro nem ser tudo, se, por um lado, faz ferida narcísica, por outro é alívio. É perda mas também chance de se colocar no mundo. Há alteridade radical e indevassável, há limite, o terceiro, a lei. Como diria Freud, o complexo de Édipo é também se deparar com a posição de ‘terceiro excluído’, aquela que, no melhor dos casos, aprenderemos a simbolizar e sustentar (e sem sofrer tanto).
Aqui podemos colocar uma pergunta: a introjeção da lei ou de uma instância supraegoica a nos vigiar, punir e enxotar a gozar é o melhor que poderíamos obter desse confronto inaugural com o Outro? Seja numa encruzilhada tripartida, seja numa dialética entre senhores e escravos, na constituição do Estado de direito ou de um sujeito humano singular não psicótico nem psicopata, a noção de limite é constituinte. Dizendo de uma maneira clássica, o pequeno bebê edípico continua, tendo já inaugurado a primeira volta da longa corrida do narcisismo, no duro processo de formação do Eu e se debate na quase eterna oscilação entre uma função de ‘maternagem’, ou melhor, de junção, de grudação e uma função ‘paterna’, de corte, de separação. Nenhum ser humano, vivo talvez, consiga sobreviver sem se haver com essas duas forças, de buscar se enroscar no ninho ou no cobertor, e de ter que aprender e desejar alçar voos.
Embora fique cada vez mais claro, na clínica e na cultura, o operador central da função de nidação pode até ser o corpo da mãe (pois que ainda é a fêmea humana que gesta o real embrião e o leite ainda sai das tetas dessa vaca sagrada), mas esse jogo holding x separação é cada vez mais intrincado e não necessariamente submetido à divisão sexual clássica do trabalho. Há homens que amamentam e grudam em suas crias (escondendo-se nelas, projetando-se nelas, ou exercendo a melhor função de sustentação basal necessária à formação minimamente saudável de um ser humano), há mulheres que exercem cortes reais, imaginários e simbólicos e limitam, assim, os contornos de seus filhotes. Ou seja, no início do século xxi, ‘mãe’ e ‘pai’ podem ser lugares bem diversos do que foram um dia. Enfim, a partir de discussões conceituais importantes, como os colocados por Sándor Ferenczi, Wilfred Bion ou Jacques Lacan, e mais contemporaneamente por Gilles Deleuze, Félix Guattari, André Green ou Judith Butler, não temos como não traçar uma crítica ao conceito de sujeito, ao lugar transcendente da lei e das funções materna e paterna que a ideia do Complexo de Édipo nos coloca.
Numa toada paralela, alguns debates buscam ainda ajustar uma sintonia fina e criticam a ênfase que a primeira psicanálise deu às relações verticais (pais x filhos), devendo ampliar o foco para as horizontais, destacando o impacto dos ciúmes, inveja e rivalidade entre os irmãos, ou entre os pares, ou mesmo entre pais e filhos colocados numa relação imaginária de iguais sobre o processo de constituição subjetiva. Porém, de certa forma, sabemos que essa operação sempre esteve em jogo, pois o que faz corte é essencialmente a presença incontornável de uma alteridade que rompe o laço imaginário e totalitário mãe-bebê. Aliás, não deve ser à toa que essa totalidade mãe-bebê é uma das imagens mais arquétipicas e reproduzidas da nossa cultura.
A segunda trilha a ser percorrida pelo pequeno candidato a sujeito na encruzilhada edípica é refinar o processo, que começou lá no narcisismo (de fato desde o início da vida), de apropriação de um corpo: a subjetivação de um corpo próprio, erótico e pulsante. Para além de ser feito seu, o corpo é eu. O outro é quase sempre alteridade opaca e imagem projetada de meus fantasmas. Afinal, quais os limites entre o eu e o outro? Pergunta tão antiga… Meu corpo, a despeito de minhas fantasias e desejos de indistinção ou de controle, sou eu e um pouco do outro, carrega essa borda que é também equívoco e ambiguidade.
Afinal, o corpo não é, tal como desenhado na construção individualista moderna, uma estrita unidade autônoma e psiquicamente fechada em si mesma, como por vezes a ficção nos leva a imaginar (bolhas ou cápsulas ou ilhas) ou alguns efeitos da cultura nos obrigam a questionar (as curiosas notícias de garotos que podem ficar anos sem sair de um quarto, gerando moeda e recebendo comida, únicos esteios de realidade externa às quais consigo conectar meu corpo). Não, o contemporâneo está quebrando os limites do corpo uno. A clínica tem mostrado que no sexo entre duas pessoas, por exemplo, temos na verdade vários seres envolvidos: trata-se sempre de uma miríade de corpos, fantasias, memórias, peles, partes de frases e vivências. Não funciona se não é assim. Ou seja, o objetivismo não seria propriamente a melhor matriz para capturar a sexualidade humana, ou qualquer outro processo psíquico. A encruzilhada edípica é isso também: vamos desenhando inconscientemente os detalhes excitantes desse filme, num jogo sempre com toques sádicos e masoquistas em que Eros encontra Tânatos e faz as alegrias da carne, daí em diante marcada por imagens, narrativas e fluxos. O pequeno ser se inspirou no que imaginou da sexualidade adulta, animal, fantástica; dos pais, dos vizinhos, dos primos, de si? Claro, a cada um a sua história, a cada um uma ‘cena primária’ a fantasiar. Usamos nossos próximos para isso, nosso núcleo proximal quase sempre chamado familiar. Sim, estavam à mão. Por mais que fujamos, eram eles que estavam por perto quando o corpo se fazia desejante e crescido. Eram origem e destino, mas também, de fato, eram somente esboços, traços de histórias que impregnaram o ser.
E por fim, a terceira e talvez mais conhecida faceta da matriz edípica: como se colocar diante do sexo, ou melhor, do (grande) enigma da diferença sexual? Basta recordar seus sonhos, fazer uma análise, fazer sexo, não fazer sexo, ter um filho ou abaixar-se para escutar as crianças que a questão surge em sua inteireza: afinal, que cargas d’água é essa história de menino e menina?
Este é um dos primeiros grandes embates filosóficos, digamos, teóricos, e de inúmeras consequências práticas para nosso pequeno humano. A diferença nunca foi conceito fácil, e não sei se a espécie humana está à altura dele. Pois que sempre caímos na régua unidimensional, isto é, fálica, e ditamos uma escala unívoca para alocar a diversidade dos seres, corpos, órgãos. Ter ou não ter algo, objeto fetiche e mágico, conceito por excelência que atravessa a longa dialética fálico x castrado que Freud tão insistentemente cifrou e milhares depois dele obedientemente repetiram. O falo está nos programas de tv, nas telas de cinema, na lógica publicitária geral que move nosso desejo mais primário. Por que meninos e meninas haveriam de se formar diferentemente? O caso é que estão se formando diferentemente. Se é de forma submetida à lógica de completude fálica, veremos. De novo: afinal, o que é homem e mulher? Não sabemos ao certo, e talvez não importe. Arriscado dizer isso, mas é o mais interessante a se colocar neste momento que, ao esticar tanto, estilhaça os gêneros.
O Édipo convoca uma trama intrincada, sem desfechos certeiros e por vezes fatal. Fatal no sentido em que podemos nos deixar aprisionar muito tempo -décadas- diante das identificações em jogo, sem daí extrair uma eventual ferramenta de gozo que seria o melhor a se fazer desse estrangulamento de sentido em nossas vidas que é o complexo de Édipo. E fatal num sentido mais arcaico: depois dessa travessia não somos mais, de qualquer maneira, os mesmos de antes.
Herói trágico ou mito transhumano?
O complexo de Édipo veio à luz em parentesco com pilares centrais da modernidade: uma subjetividade individual com uma identidade desvelada e assumida; subjetividade essa que se ‘desenvolve’, sobretudo a partir de um processo de constituição desejante; processo cuja cena central replica o desenho da ‘célula máter’ social desse momento histórico, a família nuclear heterossexual ‘burguesa’. Pois são justamente essas três metaficções modernas que parecem hoje, no início do século xxi, se desmanchar. Ao menos sua estabilidade e hegemonia estão sendo postas em xeque (não sem resistência).
A concepção tradicional de sujeito traz a ideia de um indivíduo marcado por uma identidade unívoca mais ou menos bem estabelecida, tanto no tempo como no espaço. Se na prática essa ideia nunca funcionou muito bem, hoje podemos dizer que de fato os processos de diluição se aceleram, ao mesmo tempo que as lutas identitárias e por vezes tribalizantes nunca tenham estado tão à tona. Queremos crer que o sujeito não tem densidade nem permanência, não tem uma identidade fixa, é um ser constituído e reconstituído dentro de um processo histórico e social que define continuamente seus contornos -políticos, éticos, estéticos, eróticos -e, de certa forma, a observar o andar da carruagem, materiais, bioquímicos e corporais. Afinal, por que se aprisionar num corpo de homem ou de mulher, no calabouço do sexo? Gêneros em mutação talvez nos interessem mais. E, por que, radicalizando o fio do raciocínio, por que uma identidade fixa enquanto “humano”? Por que essa espécie? Talvez eu queira experimentar novas e outras formas de sentir, farejar, olhar, trepar. Por que objetos vestíveis de uma realidade virtual não me propiciariam o prazer de um olhar noturno, como o dos morcegos? E se eu gostar, e quiser implantar eletrodos em meus neurônios e assim olhar a realidade?
Essas ideias sem dúvida se chocam com o núcleo duro da modernidade que apontava para procedimentos de categorização, dos quais uma certa leitura clássica e ‘ortodoxa’ do complexo de Édipo é, em alguma medida, derivada: a que defenderia duas grandes linhas de diferenças, sexual e geracional: há homens e mulheres; há pais e filhos, pais com autoridade, filhos com obediência. Basta pensar em Maio de 1968 ou nas vanguardas da contracultura para saber que talvez essas ordenações não funcionem mais muito bem, embora por vezes, apesar de, para além de movimentos moralistas de defesa da “família” (e eventualmente de “jesus”), uma certa psicologia busca retornar hoje. Não sei se conseguiríamos restringir a noção de diferença a uma lógica binária de produção, que se caracterizaria pelas oposições natureza/cultura, sexo/gênero, masculino/feminino, atividade/passividade, heterossexualidade/homossexualidade. O anseio simbólico humano, por mais que queira ser ordenador de caos, parece não estar mais conseguindo dar conta de um paradigma dualista.
Esse é um dos grandes debates epistemológicos no campo das humanidades hoje, e da psicanálise em particular. Debate com efeitos tanto teóricos -complexo de Édipo histórico, essencialista, estrutural?- quanto clínicos: as psicopatologias ou “transtornos” clínicos devem ser lidos a partir de qual prisma, tendo um germe de formação a partir da matriz narcísica, edípica ou outra? Como situar os estados-limite, borderlines, adictos, melancólicos? As novas formas de sofrimento psíquico demandariam novas lupas conceituais ou ajustes nas ferramentas. Podemos compreender o Édipo como uma montagem — inevitável, plural e com determinadas posições — que convida cada subjetividade a encontrar sua forma singular de travessia.
Atualmente, se transformam os processos de constituição do sujeito, e assim, dos objetos (psíquicos). Como aponta Butler: uma mulher pode se conectar com o resíduo fantasmático de seu pai em outra mulher, ou projetar sua ligação com o ninho materno pela via da relação com um homem provedor. Aqui, estamos no campo do heterossexual? Do homossexual? Ou, ainda, um homem pode se identificar com sua mãe e desejar uma mulher ou outros homens, a partir dessa identificação. E se esse homem mantém um corpo de homem, o transforma num corpo de mulher, andrógino, trans, o que ele é? E se esse novo ser, trans, deseja outro homem ou uma mulher, a partir de um amplo espectro de genitálias e marcas, seu desejo seria heterossexual, homossexual, gay, lésbico ou intersexo? Quem tu és, Édipo?
Há (felizmente) muitas outras formas de vida e de parentesco pipocando por aí, agora e cada vez mais. Novos Édipos ou mesmo novos complexos nasceriam daí? Estaríamos gestanto outras montagens simbólicas para fantasias inconscientes numa era pós-dualista e pós-orgânica?
A individualidade -ou a matriz individualista moderna- parece seguir firme e forte, aliás cada vez menos firme e mais forte: cada vez menos segura de si, pois pode e mesmo deve inventar-se a si mesma a cada momento (a cada estação talvez, tal como a moda, para não perecer) mas também cada vez mais forte, mais “empoderada”, com mais apetrechos e multiplicidades. A essa ideia junta-se um outro preceito moderno, agora hipermoderno e ultraliberal: a ideia de um projeto de liberdade total para inventar a si mesmo e criar-se, à exaustão. E aqui encontramos o conceito do século, o Elogio da Potência, do desabrochar de todas as potencialidades, do exercer todos os poderes. A nova fantasia é a da libertação de todas as identidades, no mar profundo e prenhe da indistinção. Seríamos então puras multiplicidades, potencialidades? Seria o realizar de um antigo sonho.
Os dados estão lançados para a aventura: ainda o gérmen de um Eu à procura de um lugar no mundo, tal como Édipo. Na eterna aventura de buscar construir um lugar. E, para os que terão coragem, um saber.