Desejo, crime e castigo

O desejo parece atrair tragédias. Desde tempos remotos podemos dizer que essa conexão se faz, mais ou menos conscientemente. Édipo e Antígona estão aí para nos lembrar disso, sob o pano de fundo dos coros das tragédias gregas que não deixam de sublinhar o ponto de entrelaçamento entre desejo e morte. Também Paola e Francesco, romântica e cruelmente encarcerados no Inferno de Dante. E por que não citar o clichê ‘Romeu e Julieta’, firmemente enraizado nas nossas mentes e referências? O amor impossível, o desejo devastador ou a vontade tresloucada que arrastará o sujeito rumo à desgraça… Será que o desejo se filia ao crime – e que, assim, levará inevitavelmente ao castigo? A repetição dessa estrutura nas formações da cultura ao longo dos tempos nos assinala que não temos muita saída: pulsão e proibido estão conectados, desejo e crime (na fantasia ou no real) são quase as duas faces de uma mesma moeda.

Vamos enfocar esse parentesco mais de perto, a partir do cinema e do teatro, tendo como fio condutor Toda nudez será castigada, peça escrita em 1965 por um dos grandes delatores das fissuras no universo burguês, Nelson Rodrigues. Em 1972, Arnaldo Jabor adaptou, fiel e acuradamente, o texto para o cinema. De que se trata? Em poucas palavras, temos um homem viúvo que se sente na obrigação de cultuar sua mulher morta, não podendo assim envolver-se com nenhuma outra. No entanto, apaixona-se perdidamente por uma prostituta que irá no final traí-lo com seu filho. Sucessão de desencontros, desenrolar quase atroz de desgraças, santidades e perversões que se velam e se revelam.

Se a fala sobre o tema parte de alguém que trabalha com psicanálise, inevitavelmente se delineia uma expectativa do leitor/receptor: saber sobre os desejos, as taras, as perversões, as pulsões mais profundas do humano que se contraporiam às repressões mais violentas. Enfim, sexo, adultério, incesto, relações familiares enlouquecidas, complexos edípicos… No entanto, nossa trilha será um pouco diversa. Evitemos a tentação ou a armadilha da interpretação fácil. Afinal, desejo e morte – dupla temática básica em jogo – são questões humanas fundamentais, que não se esgotam simplesmente ao serem confortavelmente confinadas e classificadas no território alheio do “inconsciente”. Muito antes da formalização do conceito (na passagem do século XIX para o XX, com Freud), desejo, morte, crime e castigo permeavam as fantasias e produções humanas. Afinal, não foi assim que nasceu o homem, marcado pelo pecado bíblico e sua punição maior, a perda do paraíso, felicidade plena?

Desejo, perversão, morte. Se a obra ainda hoje é polêmica, “forte”, quando ver mulher pelada no outdoor, na praia e na tv é quase banal, quando o movimento de afirmação gay já ganhou uma força considerável e pública, quando, de uma forma ou outra, a internet possibilita a formação e troca de informações entre grupos de pedófilos e uma pornografia quase infinita, imaginemos como foi chocante o filme em seu lançamento. Obteve, inclusive, enorme sucesso de público, sendo censurado logo em seguida, em 1973. Recebeu, nesse mesmo ano, alguns prêmios importantes: além de melhor filme e melhor atriz para a protagonista Darlene Glória, no Festival de Gramado, recebeu o Urso de Prata no Festival de Berlim e fez parte da seleção do Festival de Cannes. Não podemos deixar de sublinhar essa curiosa conjunção de ‘premiação e censura’, numa época específica da história brasileira – tocaremos na vertente política mais adiante.

Hoje, 40 anos depois da peça, 30 depois do filme, podemos fazer uso de outros elementos a fim de discutir o tema: desejo, crime e castigo. Irei apresentar uma proposta de leitura de Toda nudez ancorada em dois campos – estética e psicanálise – e centrada, num primeiro momento, em considerações teóricas sobre a tragédia e o drama em sua relação com a modernidade e, em seguida, numa análise mais detida da estrutura do filme e determinadas cenas e personagens principais.

I. Tragédia e Drama

Enfoquemos primeira e brevemente o teatro e as teorias estéticas. Teatro porque o filme é uma adaptação do teatro (e uma boa adaptação) e, de certa forma, podemos dizer que ele guarda muito do tom teatral na sua direção de atores.

A obra de Nelson Rodrigues para teatro foi publicada pela Nova Fronteira, em 4 volumes, que seguiram uma ordem cronológica e uma classificação lógica: peças psicológicas, peças míticas e peças trágicas (tragédias cariocas). Nesta última categoria é que se insere Toda nudez será castigada. No entanto, ela ocupa de fato um lugar um pouco híbrido na dramaturgia de Nelson, pois há algo do trágico e também do dramático em sua estrutura, como veremos a seguir. Como se repete com certa frequência, Nelson Rodrigues retrata o “drama burguês” de classe média suburbana e sua crise de valores morais (leia-se, sua falsidade de valores morais).

A tragédia é bastante antiga na história. Já permeava a cultura grega, por exemplo, com Édipo Rei, Édipo em Colona e Antígona, para ficarmos na clássica trilogia de Sófocles. Em poucas palavras, a tragédia lida com um ser praticamente impotente no decidir o curso da sua história, presa que é do destino inevitável que irá persegui-lo, quer ele queira ou não. Veja-se Édipo em sua tentativa frustrada de escapar às previsões do oráculo que havia afirmado que ele mataria o pai e casaria com a mãe. De um lado, o pobre humano, joguete do inexorável; de outro, o destino implacável, espécie de Deus decididor da vida terrena. A peça rodrigueana lida, assim como as tragédias gregas, com personagens que parecem condenadas a obedecer um destino fatalista e que, em última análise, as levaria à morte. Tanto Herculano quanto Geni parecem condenados ao sofrimento e à submissão a um destino funesto, que se encontra além e acima de qualquer possibilidade de intervenção subjetiva.

Já o drama é mais recente, nasce com a modernidade. Surge como consequência da ‘revolução’ na maneira do ser humano conceber o mundo e a si próprio que se instaura a partir do Renascimento e se adensa no século XVII. O drama caminha junto à Revolução Industrial e aos ideais iluministas– afasta-se dos temas religiosos e do teocentrismo da Idade Média e passa a se estruturar em torno de um sujeito como ser racional e, portanto, senhor de si e do mundo que o cerca, passível de certa possibilidade de autonomia e liberdade. O eixo dramático passa a enfocar a vida “real”, imanente, instaurando a intriga moderna. Esta tem como elementos deflagradores uma nova concepção humanista que segue pari passu os processos de industrialização e modernização, o adensamento das massas urbanas e, portanto, da classe média, enfocando assim os dramas do cotidiano da nascente burguesia.

Toda nudez não deixa de se situar aí: temos a família carioca suburbana retratada em suas paixões mais ou menos nobres, mais ou menos mesquinhas e interesseiras – como o irmão mau-caráter que não trabalha e vive do dinheiro do patriarca da família ou o policial levemente corrupto e malandro que marca encontros com a amante em vez de atender o público (questão importante no debate da brasilidade: onde, quando e como surge a figura do brasileiro e, mais especificamente, do carioca malandro?). A traição no casamento, a prostituição, a vagabundagem passam a ser temas recorrentes.

Outro aspecto relevante do drama é o nascimento de um herói que busca escapar, pela via crucis do sofrimento e da interiorização psicológica, da inexorabilidade do destino que submetia o herói trágico. Temos, assim, um sujeito que busca uma elaboração e reflexão do que lhe acontece, acreditando – na linha dos ideais iluministas de crença na razão humana – poder alterar os desígnios primeiros da Fortuna, tal como expresso no conhecido verso de Hölderlin, em que o homem poderia escrever seu próprio destino. O Romantismo nos brinda com a possibilidade de o sujeito poder tomar as rédeas da fortuna, desafiando, de certa maneira, o desígnio dos deuses ou enfrentando o peso da tradição e da moral vigentes.

No entanto, na obra em questão, tanto Geni quanto Herculano, terminam presos nas malhas do oráculo que lhes interditava a relação. E quanto ao filho? Lancemos uma hipótese arriscada: Serginho, de certa forma, parece ser o único a poder desenhar as regras de sua vida e seu desejo. Veremos por quê.

II. Toda nudez será castigada

  1. A estrutura narrativa

A cena de abertura já é prenunciadora da estrutura narrativa do filme, em que passado e presente se entrelaçam, e revela a pregnância do destino ou da exterioridade sobre o frágil herói: Herculano no carro é seguido pela câmera, sempre em seu encalço. Ele segue em direção à morte, à morta Geni. O sujeito vai ao encontro do amor e se depara com a morte.

Aí se opera um corte temporal na narrativa, que retrocede ao início, isto é, a um outro momento de morte: o sofrimento de Herculano, agora viúvo, que deseja somente morrer. Como se o herói não tivesse escapatória: do pó viestes e ao pó retornarás – personagem presa nas rodas da Fortuna desta efetiva tragédia, mesmo que carioca.

Entre os extremos inexoráveis da morte, Toda nudez nos permite um fiapo de vida e desejo. Mas somente um fiapo, tempo da peça, tempo do filme. Herculano inicia sua trajetória na perda da primeira mulher e a finda com a morte da segunda. Fadado a permanecer viúvo.

  1. O título. Desejo e culpa

Toda nudez será castigada. Dois elementos básicos se destacam: a nudez e o castigo. Corpo, sexo, desejo, pulsão, prazer que se contrapõem à punição, culpa, repressão, morte. Ou seja, temos a estrutura clássica que persegue o homem, tal como enunciado no título de um dos mais célebres romances de Dostoievski: Crime e castigo, que inclusive inspira o título deste artigo. No romance, publicado na segunda metade do século XIX (1860, um século antes da peça de Nelson Rodrigues), o herói, Raskólnikov, após uma via crucis pelas ruas de São Petersburgo, no desamparo da pobreza e do desespero, comete um crime. Ao crime se enlaça a iminência do castigo e a tentativa de justificá-lo com a idéia de que a História já absolvera outros grandes ‘assassinos’ como César ou Napoleão.

Crime e castigo. Desejo e punição. Essa é mais uma dicotomia trabalhada em Toda nudez. Sem escapatória, esse é um dos conflitos primordiais do humano, tanto no âmbito individual – Herculano dilacerado e tateante entre um e outro extremo –  quanto social – a castidade das tias x a lascívia das prostitutas. Ou mais amplamente, como nomeia Freud, em “Mal-estar na civilização”, o sujeito vê-se frente ao inevitável conflito entre as pulsões e a repressão, tanto interiorizada em funções superegóicas quanto operada pela cultura para que a sociedade seja propriamente “humanizada”, isto é, penetre nas raias da civilização.

Nessa vertente, destaca-se uma cena emblemática do filme: o primeiro encontro dos amantes. Depois de uma noite ardente (Herculano “deu 7 vezes” e chegou a confessar “minha mulher era uma chata”), o protagonista acorda na manhã seguinte sem saber o que lhe acontecera, pobre estrangeiro em relação a seus desejos e pulsões, e então pergunta à mulher deitada a seu lado: “Quem é você?”, ao que Geni, maternalmente, lhe responde: “Melhorou, filhinho?”. Alienado herói que se desconhece e se estranha, negando que tenha se envolvido, e tanto, com aquela prostituta.

Já a personagem Geni apresenta uma densidade psíquica mais complexa: transita vorazmente entre ao menos três registros dos elos entre os humanos – o amor sensual, o amor romântico e apaixonado e o amor maternal. Ela deseja, ela ama, ela cuida. E o faz numa intensidade tal que acaba por se enroscar nesses lugares: prostituta que se satisfaz em seu desejo, comercializa-o mas também se envolve, mãe madrasta que se apaixona pelo enteado, adúltera que ao mesmo tempo trai e é fiel. Como categorizá-la? Talvez impossível, representante do feminino como “continente negro” freudiano não passível de plena apreensão simbólica. Sabemos simplesmente que deseja, comete crimes e paga (caro) por eles.

  1. Desejo e perversão

Será que o desejo de um homem por uma mulher  e o desejo de uma mulher por um homem e depois seu amor por outro seriam perversos? A atração do casal principal da trama, por mais ‘perversa’ que possa parecer e ser retratada, seria de fato algo que infringiria as leis e as regras (mais ou menos implícitas) da moral, dos bons costumes e da sociedade? Talvez não, embora o desenrolar da história possa nos levar a crer que sim. O autor achou por bem enquadrar essa atração, esse desejo ‘ilegal’ na forma que a conservadora cultura dispõe para tratar de tais temas: o casamento. Legalizar o pathos. No sutil e complicado jogo do desejo desempenhado tanto por Geni quanto Herculano, o conflito entre o que ‘quero’ e o preço que ‘pago’, chega ao paroxismo. Conflito que pode ser representado pela fala da protagonista que já se tornou clássica na memória  brasileira: “só casando”, “só toca em mim  casando”.

No entanto, talvez a cena que eu destacaria como emblemática de uma estrutura de fato perversa, no sentido daquilo que se contrapõe à lei, seria a cena do banho: as três tias, sem outra ocupação em suas vidas vazias, dedicam-se de corpo e alma a seu “filhinho” querido, seu bebê mimado e protetoramente cuidado: Serginho, homem de 18 anos que, não por acaso, é nomeado pelo diminutivo. Ele sim, personagem enigmática que não sabemos exatamente como classificar: o mais interessante perverso da trama, que não ‘respeita’ nem obedece nenhuma das convenções sociais, deixando-se mimar pelas tias solteironas ou seduzindo a mulher puta do pai… ou, ainda, um homem mais próximo de seu desejo, que acaba por assumi-lo – homossexual – de fato total e claramente fiel à mãe e sua memória?

  1. Vertente política

A política em sentido clássico não faz parte explicitamente de Toda nudez. Porém, as relações entre os cidadãos da pólis e seus papéis sociais são enfocados acurada e mesmo sarcasticamente. O texto trabalha com a fixidez dos lugares sociais a priori estabelecidos, revelando assim um verdadeiro conservadorismo tanto na estrutura psíquica das personagens quanto na formatação estereotipada que enquadra os laços sociais.

A prostituta morre como puta, não tem saída; para ela não há redenção, nem pelo casamento, nem pelo amor. As três tias, ocupando solidamente o clichê das “solteironas”, fadadas a serem mães postiças, fantasmas que circulam numa estrutura envelhecida, cumprem até o fim a falsidade da moral dominante – veja-se a cena do casamento, em que se legitima um acordo implícito entre elas: não, Geni nunca foi puta, “Geni casou virgem”. Dicotomia entre a santa (a falecida, a “chata”) e a puta (Geni, a desejante), clássica oposição mantida há séculos no tocante aos lugares possíveis do feminino.

Há ainda outros retratos de diversas figuras sociais: o filhinho mimado e gay, o latino ladrão e gay (boliviano, verdadeiro sedutor da trama), o herói alienado que não entende nada, marido traído que é sempre o último a saber. Será que Nelson Rodrigues era realmente, como ele próprio dizia, um conservador? Ou seria um revolucionário, como quer parte da crítica?

  1. Enigmas

Para concluir, apontarei alguns paradoxos, problemáticas insolúveis próprias do humano, abordadas de maneira magistral em Toda nudez. Três fios se entrelaçam e chamam a atenção: eles tocam o lugar do feminino, a estrutura própria do desejo e a distinção às vezes não plenamente trabalhada entre culpa e responsabilidade.

O que é uma mulher? Desde Freud o enigma do feminino permanece em aberto com a famosa questão: O que quer uma mulher? Na verdade, muito antes – não se pode esquecer da Bíblia e sua pecadora Eva. De qualquer forma, não podemos deixar de marcar a dualidade do lugar do feminino: a mulher sempre parece estar, na fantasia e por vezes no real, entre duas posições opostas e de certa forma complementares: a santa e a puta (como também e bem poetizou Drummond). Como não ler Toda nudez a partir daí, com uma santa e ‘chata’ falecida – leia-se assexuada –e uma prostituta atuante? A mãe, Virgem Maria (como a nomeação comprova, nossa fantasia sustenta e os dogmas da Igreja atestam: a mãe é sempre virgem) se contrapõe à Madalena, mulher sensual, com uma sexualidade madura e atuante, mulher de desejo. Tal dualidade se revela inúmeras vezes na produção da cultura, sem dúvida, e parece se manter ao longo de toda a obra de Nelson Rodrigues.

Um outro ponto da figura do feminino presente em Toda nudez é a lente que se dirige para o lugar da maternidade. Sem dúvida exaltada e encarcerada em seu papel social nobre e dignificador, a figura da Mãe se revela como o possível pólo da perversão avassaladora sobre o inocente ser que vem ao mundo (já não dizia Lacan que a mãe seria como um crocodilo de boca aberta pronto para devorar o filho se algo/alguém não desempenhasse a função paterna interditora, tal qual uma tábua que impedisse essa boca voraz?). Tomemos aqui a própria falecida, figura simbolicamente onipresente, pairando como um fantasma antropofágico sobre toda a família e servindo de ponto de fuga para o pacto explícito de fidelidade à toda prova (Serginho que cobrava do pai cumprir seu juramento de nunca mais se casar, para não “trair mamãe”). Na obra, tem-se ainda as três tias solteironas que, como vimos, se prestam obedientemente a esse estereótipo da maternidade super-protetora.

O segundo “enigma” diz respeito à própria estrutura do desejo e sua inerente mobilidade. No filme, tal movimento se presentifica em inúmeros momentos e com diversas personagens: no deslizamento desejante de Herculano (que consegue operar o luto após a perda de sua mulher e transita de sua primeira esposa para a segunda), de Geni (que se vê presa de sua paixão por Herculano e depois pelo filho deste) ou de Serginho (que, além da pregnância pulsional em relação à sua mãe falecida e às suas tias, depara-se com o envolvimento com Geni, sua madrasta e ainda o latino que conhecera na prisão). No entanto, tal mobilidade do desejo se contrapõe à rigidez da família patriarcal, bem-sucedida e portanto imutável em sua estrutura – mesmo que simbólica e imaginariamente –, onde o viúvo tem que permanecer como tal e não pode atrapalhar esse enquadre aceito socialmente com nenhum desejo perturbador. Tal imutabilidade se encontra claramente explicitada na fantasia da família perfeita, feliz e fiel de Serginho. Mais surpreendente ainda é o final da obra que nos obriga a perceber a ilusão dessa estrutura e o movimento para sempre inquieto do desejo.

Por fim, uma breve luz sobre a oposição entre culpa e responsabilidade, retornando ao título e ao início. Estamos no registro do crime ou do desejo? Virá a punição, castigo inevitável pós-crime ou, de fato, o preço a pagar pelo próprio desejo? O que o neurótico tenta é, na verdade, por todos os meios ignorar ou protelar ao menos o encontro com esse ônus. Aí está a dicotomia básica que deveríamos ultrapassar.

À oposição desejo x culpa (que engendra, portanto, desejo, crime e castigo, tal como visto em Toda nudez) deveríamos contrapor o binômio desejo x responsabilidade, situando-nos de forma a poder bancar o preço de nossos quereres. Essa ‘outra’ forma de se posicionar opera agora não mais no campo da oposição dualista (ou o desejo do eu ou o desejo do outro, estruturalmente excludentes) mas no da complexidade, uma vez que oferece mais possibilidades de escolha e ação ao sujeito, e também custos psíquicos e materiais.

Este último modus operandi não mais projetaria no Outro o parâmetro do seu desejo – a Mãe que o determinaria, ou o Pai, Deus, a Família, a Escola, o Estado, a Igreja, a Mídia etc), mas o próprio sujeito, por si, em seu próprio nome e com suas próprias pernas e meios o sustentaria. Esta última seria uma posição de maior ‘maturação’ do humano frente ao enigma do real, da falta e de seu próprio querer. Para além da culpa, do crime e do castigo, o sujeito teria que se haver com seu desejo, assumido enquanto tal, isto é, no eixo da ‘responsabilidade por’. Enfim, não mais pecador e culpado, frágil ser à espera da condenação ou da absolvição dos deuses, mas sujeito responsável que responde por aquilo que deseja.


Referências bibliográficas

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